O triunfo da indiferença?

Nas próprias escolas alastrou uma indiferença simétrica. Não me refiro sequer à crescente apatia dos docentes perante o modo como se têm generalizado os abusos dos poderes locais, mas à própria indiferença com que, passada alguma agitação epidérmica muito localizada, foram encarados vários novos normativos publicados nos meses estivais.

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Rui Gaudencio

Na última meia dúzia de anos, a “governança” em Educação tem sido feita com o recurso a uma estratégia de indiferença muito bem montada. Indiferença em relação a ideias diferentes das da elite no poder, indiferença perante quaisquer críticas, indiferença perante evidentes erros cometidos e uma notável indiferença quanto a qualquer ocorrência que desalinhe da narrativa oficial da inclusão, autonomia, flexibilidade e sucesso. Indiferença aliada a um silêncio muito selectivo acerca dos temas a abordar, em que se optou por desvalorizar qualquer circunstância menos positiva, preferindo concentrar as intervenções numa repetição monolítica dos talking points do guião escrito.

Algumas questões mais polémicas (a começar pela carreira docente e pela avaliação de desempenho, não esquecendo o modelo de gestão e a municipalização) foram quase ignoradas pela tutela e de forma nem sempre discreta consideradas da responsabilidade de outros ministérios (como o das Finanças).

Foram muito raros os momentos em que se tornou incontornável sair desta estratégia de alheamento às críticas e foi necessário reagir de forma directa a contextos menos triunfais; recordo os tempos mais complicados em que a flexibilidade curricular esteve mais periclitante, a recente disputa em torno dos alunos retidos por não frequentarem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento ou o claro atraso no fornecimento de equipamentos informáticos às escolas e alunos.

Na maior parte do tempo, a opção foi por investir em propagandas concertadas com grupos de “especialistas” ou mesmo de associações profissionais, que surgiram como uma espécie de muralha de aço das políticas desenvolvidas (como a eliminação das provas finais de ciclo ou a publicação dos decretos “gémeos” 54 e 55, não esquecendo a recente terraplanagem dos programas disciplinares). Organizam-se formações em sentido único, promovem-se debates sem contraditório, enuncia-se uma tolerância democrática que não se pratica e encena-se uma inclusão que só funciona dos portões das escolas para dentro.

Os governantes da área surgem disponíveis apenas para visitas em ambiente controlado, de modo a assegurarem sorrisos para as photo-ops previamente negociadas. Reconheço que esta tem sido uma estratégia eficaz, porque a indiferença oficial acabou por anestesiar a própria função fiscalizadora da comunicação social, cada vez com menor massa crítica livre.

Essa eficácia tem sido tal que nas próprias escolas inspirou o alastramento de uma indiferença simétrica. Não me refiro sequer à crescente apatia dos docentes perante o modo como se têm generalizado os abusos dos poderes locais, mas à própria indiferença com que, passada alguma agitação epidérmica muito localizada, foram encarados vários novos normativos publicados nos meses estivais.

Nem tudo se deve à pandemia e aos seus efeitos paralisantes. Muito decorre de um estado de generalizada indiferença, em que a maioria (dos “velhos” aos “novos”) passou a encarar medidas estruturantes, como a revogação da quase totalidade dos programas disciplinares para que as chamadas “aprendizagens essenciais” se tornem o padrão dos conteúdos a leccionar, ou meramente folclóricas, como a introdução da aprendizagem do ciclismo no 2.º ciclo ou a proibição de pãezinhos com chouriço ou de leites achocolatados (a menos que não tenham chocolate e o leite seja magro) nos bares das escolas.

Um estado de adormecimento e letargia, que resulta da percepção da inutilidade de protestos que resvalam na indiferença de quem governa e sabe que não tem as oposições no bolso, generalizou-se a par da instalação de uma concepção da Educação como o domínio do Efémero e das escolas como espaços de divulgação de estilos de vida da moda e não propriamente do que alguns antiquados consideram um corpo de conhecimentos que a Humanidade tem interesse em transmitir às novas gerações.

Falo por experiência própria, que ainda não me deixei dominar completamente pela letargia, mas para lá caminho, mais ou menos acesso de indignação perante este abuso ou aquele evidente disparate. Reconheço que de pouco adianta tentar contrariar quem ignora críticas, maquilha estatísticas, alija responsabilidades pelos fracassos que não consegue esconder e veta qualquer tipo de debate público não controlado ou em que não tenha direito à última palavra. A indiferença triunfa, a par de uma Educação do Efémero. Resta, a um número cada vez menor de velhos do Restelo, deixar registo para memória futura de que nem toda a Lusitânia foi (ainda) anestesiada.

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