Fachada ou Fantochada?

A vaga de destruição do interior do edificado do período de transição, 300 prédios entre 2007 e 2017 só em Lisboa, estendeu-se ultimamente ao património classificado quer desse período quer de períodos anteriores e posteriores e portanto as cidades portuguesas, com raras excepções, estão a perder importantíssima documentação material da sua história a uma velocidade nunca vista até agora.

Ao longo dos próximos seis anos o estado investirá mais de 3 mil milhões de euros na construção de casas, sob diversas modalidades e com diferentes propósitos, o que será um grande desafio não só para a concepção e construção de habitação nova de qualidade como também para a preservação da integridade do edificado patrimonial que será objecto de reabilitação - ou até mesmo para o eventual resgate do edificado histórico que foi parcialmente destruído por reabilitação mal feita.

Começo por me referir ao edificado do período da transição, isto é, da segunda metade do século XIX e da primeira do século XX, que corresponde a grande parte do que vemos nos centros históricos ainda hoje e que por conseguinte é a alma das nossas cidades.

É sobretudo a este património que se aplica geralmente desde a década de 60, o discutível princípio da conservação apenas da fachada o qual, como infelizmente todos sabemos, convive com a indiferença cada vez maior em relação ao que os donos queiram fazer no interior dos prédios.

Graças a esse discutível princípio a estrutura interior desses prédios construída em madeira, argamassa e cal foi sendo substituída por uma nova estrutura muito mais pesada construída em cimento e ferro sem qualquer consideração pela sua menor adaptabilidade à temperatura e aos sismos, pela sua maior pegada ambiental ou pela sua maior dependência de importações.

A vaga de destruição do interior do edificado do período de transição, 300 prédios entre 2007 e 2017 só em Lisboa, segundo Paulo Ferrero, estendeu-se ultimamente ao património classificado quer desse período quer de períodos anteriores e posteriores e portanto as cidades portuguesas, com raras excepções, estão também a perder importantíssima documentação material da sua história a uma velocidade nunca vista até agora.

O próprio princípio da conservação apenas da fachada está em declínio tendo deixado de incluir a manutenção das cantarias limpas, alvenarias de argamassa de cal pigmentada, das portas originais tradicionalmente feitas com a nossa madeira de pinho e pintadas com tintas feitas com as nossas resinas, das janelas também de madeira e de caixilhos subdivididos com vidros pequenos, dos telhados e suas coberturas de telha e dos algerozes interiores de barro cozido que despejam as águas em caneiros tapados incrustados nos passeios.

Em vez disso, o principio da manutenção apenas da fachada passou gradualmente a conviver com: cantarias pintadas, revestimentos de cimento pintados com tintas químicas, portas feitas de plástico e sem ligação formal com as originárias, janelas cujos caixilhos são agora também feitos de plástico com o pretexto ardiloso de contribuir para a eficiência energética e cujas vidraças variam livremente ao gosto dos ocupantes de cada apartamento, novos andares de mansardas altas cobertas de chapa cinzenta no lugar dos sótãos - autênticas cabeleiras como em tempos disse com humor Eduardo Souto de Moura - e algerozes exteriores feitos de plástico que despejam diretamente para cima dos passeios.

2. Esta degradação lamentável do património edificado histórico, classificado e não classificado, em resultado da aplicação do princípio da conservação apenas da fachada aos prédios do período de transição ou anteriores, e da recente adulteração desse mesmo princípio, tem contribuído também para o aumento das rendas dos apartamentos nos centros históricos e por consequência não só para a expulsão dos que aí nasceram e gostaria de continuar como para a dificuldade de para aí se mudarem os que vêm trabalhar para a cidade.

Com efeito, se o dono da obra, sobremaneira no caso de ser uma entidade pública, tivesse que respeitar não só a fachada como a estrutura interior dos prédios, como se vê em tantos outros centros históricos pela Europa fora, os apartamentos, além de muito mais resistentes aos sismos e aos extremos de temperatura, seriam mais baratos e portanto acessíveis aos jovens adultos de qualquer classe social.

Desde que, claro está, uma parte importante do referido património não tivesse sido ainda por cima capturada por detentores de vistos de ouro e exilados fiscais ou desviada para o chamado alojamento local, este sem quaisquer entraves durante quase cinco anos a pretexto da falácia segundo a qual se tratava duma finalidade ‘residencial’ como qualquer outra.

Além de terem deixado encarecer o metro quadrado em consequência da substituição das estruturas em madeira e cal por estruturas caras de cimento e ferro e da afectação de uma grande parte do edificado em alojamento para turistas europeus pouco exigentes, as nossas autoridades municipais até há muito pouco tempo também achavam que não tinham responsabilidades em matéria de habitação acessível mas apenas em matéria de habitação social e mesmo assim praticamente só em Lisboa e no Porto.

Foi afinal só na campanha eleitoral de 2017 que pela primeira vez o tema da habitação acessível irrompeu na maioria das campanhas locais e as promessas então feitas não puderam ser cumpridas por desentendimentos com o Tribunal de Contas sobre o modelo escolhido e porque a luta contra a pandemia absorveu recursos humanos e materiais.

Se os edis portugueses conhecessem melhor o perfil dos grandes municípios nos outros países desenvolvidos, teriam presente que a disponibilização e gestão de habitação social e acessível é desde sempre uma das suas principais funções e que, segundo a OCDE, a percentagem de habitação  intervencionada no conjunto do edificado é por isso muito maior do que entre nós: 37,5 por cento na Holanda, 24 na Áustria, 22 na Dinamarca, 17,5 no RU, 14 em França, 13 na Irlanda, 10 na Finlândia, mas apenas 2,5 por cento em Portugal.

É claro que não é fácil adquirir perícia neste domínio, que implica, além de regulação nacional com poderes de intervenção administrativa sem contemplações em caso de violação, diálogo local permanente com os munícipes, empresários com currículo, projetistas independentes dos empreiteiros e fiscais que não se limitem a fazer uma avaliação de conformidade com a lei.

No entanto, uma vez reunidas essas condições, e respeitando integralmente o nosso edificado histórico, fachadas e interiores, a reabilitação urbana pode dar um grande contributo para proporcionar apartamentos de renda acessível aos portugueses que acabaram de entrar no mundo do trabalho e querem criar família dentro da cidade - em complemento do mercado livre de casas arrendadas cuja oferta será sempre insuficiente mesmo quando for finalmente libertado das leis iníquas que o distorceram, desde as centenárias às mais recentes.

3. Mas a alergia geral à conservação integral do edificado histórico deve ser muito forte ou de outro modo não se compreenderia porque é que nunca mais se ouviu falar da classificação como património mundial da Baixa Pombalina, desde que os partidos do arco de governação tomaram a decisão insensata de instalar bares, restaurantes e discotecas no Terreiro do Paço.

Já em 1988 uma petição para que os prédios pombalinos ardidos na Alta Pombalina fossem integralmente reconstruídos, por fora e por dentro, e com os materiais e as técnicas originais, não conseguira influenciar os responsáveis pela aprovação do projeto de reconstrução.

Só se explica a desistência da classificação de um dos maiores e mais bem preservados centros históricos iluministas europeus pela vontade de ir ao encontro dos promotores imobiliários apátridas que aproveitaram a destruição gerada pela crise da dívida e a desregulamentação imposta pelos credores para dominar em poucos anos a reabilitação urbana nas nossas principais cidades, a fim de alimentar a procura de residências para os detentores de vistos de ouro e exilados fiscais e para o mercado de alojamento local.

O resultado está à vista: o que demorou dois séculos e meio a conceber, construir e manter, e pelos vistos era afinal desprezado por quem manda no gosto e no negócio, foi seriamente comprometido em poucas décadas.

Desalojando da Baixa Pombalina os velhos residentes, profissionais liberais e pequenos comerciantes para dar lugar a hospedarias e restaurantes de baixíssima qualidade, desenhados por quem não foi visivelmente treinado para amar e valorizar a beleza dos interiores dos prédios pombalinos, e às famosas lojas de bugigangas, que não passam de centros de emprego fictício de imigrantes em escala para outros destinos mais promissores.

E desalojando todo o sector bancário português que abandonou as suas sedes históricas em torno do banco central e do ministério das Finanças sem que uma única autoridade tivesse pestanejado.

Bem pelo contrário, a avaliar A) pela facilidade com que a CGD alijou a importantíssima sede histórica do BNU, que é o banco emissor de Macau há mais de cem anos e continua a ser sinónimo de banco para as gerações mais velhas em outros países lusófonos, e o empenho com que está a ser esventrada para acolher mais uma dessas coleções privadas que misteriosamente proliferaram nas últimas décadas, ou B) pela ligeireza com que a sede de uma das bolsas de valores mais antigas da Europa, no torreão nascente do Terreiro do Paço, em vez de ter sido apetrechada para voltar a acolhe-la, foi convertida num centro de interpretação da pesca do bacalhau…

Ou seja, em vez de terem feito o que pudessem para consolidar a identidade do lugar simbólico por excelência da nossa liberdade nacional, o famoso Terreiro do Paço, onde os ministérios, os tribunais, a Marinha, os bancos e as grandes casas comerciais estiveram sedeados ininterruptamente desde a Idade Media, e que por isso era a porta de entrada obrigatória de todos os chefes de estado que nos visitavam, os poderes públicos competentes não só cederam à pressão para entregar espaço nas sedes dos ministérios para a instalação de restaurantes, e de um hotel no caso da sede histórica do ministério da Administração Interna, como criaram condições para a liberalização da transformação da Baixa Pombalina toda, antes que alguém se lembrasse do projeto de propor à UNESCO a respetiva elevação a património mundial, como era e é a ambição dos lisboetas.

Há no entanto muito património pombalino privado e público cujos ricos interiores não foram ainda destruídos e podem voltar a servir para habitação sem terem que ser descaracterizados com intervenções agressivas como a substituição de portas e janelas e a remoção de soalhos em madeiras exóticas bem conservadas, a demolição de paredes ou o rebaixamento de tetos.

E muito património público que conserva os seus usos originais e pode assim ancorar o resgate da identidade da Baixa Pombalina: paço municipal, banco central, sedes históricas do ministérios da Agricultura, da Justiça e das Finanças, dos tribunais Supremo e da Relação de Lisboa, dos estados-maiores da Marinha e, em Santa Apolónia, do Exército.

4. Esperemos pois que os debates da campanha para as próximas eleições autárquicas contribuam para o aumento da consciência da necessidade de arrepiar o caminho que tem sido seguido até aqui e, aproveitando a próxima vaga de construção de habitação social e acessível ao abrigo do PRR, de resgatar com essa finalidade alguns dos prédios erradamente desviados para a hotelaria de baixa qualidade e, sobretudo, de valorizar o muito que resta incólume do edificado dos séculos XVIII, XIX e XX, mantendo intactas as preciosas fachadas e os ricos miolos dos prédios e, no que respeita ao Terreiro do Paço e à restante Baixa Pombalina, consolidando a sua identidade original e corrigindo os erros lamentáveis que se fizeram por forma a que possa ainda vir a ser classificada  como património mundial pela UNESCO.

Para esse efeito, as autoridades municipais deviam recuperar a capacidade que historicamente sempre tiveram de, em diálogo permanente com a parte mais fraca, ou seja com os residentes, e se necessário recorrendo ao referendo local, regulamentar o tipo de actividade que pode ter lugar em cada zona, a fim de poderem libertar os bairros residenciais históricos da proliferação do alojamento local e de poderem pôr cobro à extinção alucinante das lojas tradicionais e sua substituição por comedouros, bares e discotecas para turismo de massas.

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