Recordes

Temos o dever (e devíamos ter o prazer) de celebrar quem atingiu o topo, sem falsas modéstias. Em ciência, em futebol, no que quiserem, mas, claro, dentro dos limites de cada área.

O recorde de golos numa seleção masculina de futebol detido (agora isoladamente) pelo “nosso” Cristiano Ronaldo foi celebrado de forma muito justa, se algo patrioteira. Não há mal nenhum nisso, dentro dos limites de não se dever tapar o sol com a proverbial peneira. Num país que cultiva muito bem (não digo “como nenhum outro”, não conheço os países todos) a pequena inveja, a maledicência, o triunfo da mediocridade e o “sim, mas...” (bastava ouvir alguns comentadores no final do jogo com a República da Irlanda), temos o dever (e devíamos ter o prazer) de celebrar quem atingiu o topo, sem falsas modéstias. Em ciência, em futebol, no que quiserem, mas, claro, dentro dos limites de cada área.

Tenho muito pouca paciência para quem reduz a ciência nacional às suas experiências pessoais e aos microcosmos dos seus laboratórios e instituições, falando categoricamente fora da sua área de excelência (e cometendo erros escusados); tal como não quero saber dos produtos que Cristiano Ronaldo patrocina ou das suas opiniões extrafutebol; muito menos as dos seus familiares. Sei é que Portugal deve, sem sofismas, muito dos dois únicos títulos de seleções de futebol masculino sénior que conquistou a CR7, tanto quanto é possível num desporto coletivo. Sim, quase não esteve na final de 2016 (obrigado Éder, onde quer que estejas!), mas não teríamos lá chegado sem ele.

Pessoalmente tenho dois agradecimentos a fazer. Para quem cresceu a ver futebol quando irmos a fases finais de Europeus e Mundiais era meio milagre (o que hoje se esquece), obrigado por ter ajudado a elevar a fasquia; por nos ter habituado a ganhar, a exigir qualificações e vitórias, a transcender, a acreditar, a não ficar admirados com o sucesso. Que tem de ser natural, quando ao talento se alia trabalho duro e boas condições (e alguma sorte). Mais de metade da minha luta no ensino universitário e na investigação científica tem sido essa. E muito obrigado, não só a Carlos Queiroz e Artur Jorge (não me esqueço) ou a José Mourinho, mas sobretudo a toda a malta extraordinária que faz o mesmo pela ciência em Portugal, e nos dão exemplos diários para reforçar a mensagem, apesar de toda a obscuridade não científica que rodeia a nossa atividade.

Tentem é não resvalar para o Lado Negro da Força, por favor; confiança e arrogância estão demasiado próximos, e não têm de ser sempre as mesmas pessoas a marcar penalidades ou livres diretos (coisa que certos jogadores também deviam perceber...). Depois, para quem trabalhou nos EUA, obrigado CR7 por me ter dado uma desculpa (mais ou menos) válida para abandonar o laboratório a horas estranhas (na Costa Oeste muitas vezes de manhã) para assistir a jogos em bares com muitos outros cábulas momentâneos, com a “obrigação” de beber uns copos a fazer de conta que estou na Praça da República, em Coimbra e à noite. Acho que depois as experiências até me saíam melhor.

Mas (é verdade, vou usar um “sim, mas...”) é justo que sejamos precisos, no futebol como em ciência. Usei um qualificativo de género ao início por um motivo. É que a recordista de golos por uma seleção nacional de futebol é Christine Sinclair, capitã do Canadá, medalha de ouro em Tóquio. Vi alguns jogos, e foi uma vitória tão improvável como a de Portugal no Euro 2016. Sinclair marcou uns extraordinários 187 golos pela sua seleção, com 111 Ronaldo estaria empatado com Alex Morgan (EUA), atrás da brasileira Marta (112), de Maysa Jbarah (Jordânia, 113), e das já retiradas Abby Wambach (EUA, 184), Mia Hamm (EUA, 158), Kristine Lilly (EUA, 130) Birgit Prinz/Carli Lloyd (Alemanha/EUA, 128) e Julie Fleeting (Escócia, 116). Sei muito bem que são realidades competitivas completamente distintas, não só pela diferença de nível entre adversários (nomeadamente na CONCACAF), mas porque muitas destas jogadoras (sobretudo EUA e Canadá) têm cerca de 300 internacionalizações (Ronaldo tem 180) e, devido à dimensão de alguns campeonatos, até menos golos por clubes do que pela seleção, o que não é, de todo, o caso de CR7, a chegar aos 800 golos na carreira, e a dar lições a quem as quiser aprender também aí. Curiosamente a sua média de 0,62 golos/jogo na seleção é igual à de Sinclair.

O futebol feminino em Portugal está em evolução, e ainda longe de poder ter jogadoras no topo destas listas (Edite Fernandes fez 39 golos na seleção). Tal como sucedeu na vertente masculina e, apesar de inacreditáveis dificuldades escusadas e lideranças dispersas, também na ciência nacional, espero que lá possamos chegar, seria um sinal de transcendência e superação, a muitos níveis. Mas se Christine Sinclair se chamasse Cristina Santa Clara, e fosse de Taveiro, quero crer que o seu nome seria tão falado hoje como CR7, ou pelo menos como o iraniano Ali Daei, que, sejamos sérios, só sabemos de cor porque Cristiano o ultrapassou. E nada disto retira mérito ao extraordinário feito de Cristiano Ronaldo, que ainda bem nasceu madeirense. Na verdade, se ele procura (como diz, e bem) outros desafios e recordes, eis um bem grande, quase impossível. São os melhores.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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