A música parou de tocar enquanto o Afeganistão se adapta às regras dos taliban

As actividades culturais são permitidas, desde que dentro do quadro da sharia. Os relatos revelam que as novas regras já estão em vigor e que chegou ao fim a era da liberdade.

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Músicos afegãos num centro cultural de Cabul em 2014 Morteza Nikoubazl/REUTERS

Mesmo antes de o último avião dos EUA ter saído de Cabul à meia-noite de segunda-feira, muitas das vistas brilhantes e coloridas e dos sons da vida citadina no Afeganistão estavam a alterar-se à medida que os que ficaram para trás tentavam enquadrar-se no tom austero das regras dos novos governantes, os taliban.

O grupo tem-se esforçado para mostrar ao mundo um lado mais conciliatório, sem as rígidas punições públicas e proibições sobre o entretenimento público que caracterizaram a sua liderança antes de 2001.

As actividades culturais são permitidas, dizem, desde que não se oponham à sharia [lei islâmica] e à cultura islâmica do Afeganistão.

Contudo, as autoridades taliban em Kandahar, o berço do movimento, emitiram na semana passada uma ordem contra a transmissão de música e a presença de locutoras femininas nas rádios. Para muitas, não foi necessária uma ordem formal.

Já foram pintadas e cobertas as imagens coloridas do lado de fora dos salões de beleza, as calças de ganga foram substituídas pelo vestido tradicional, as estações radiofónicas substituíram as músicas de pop hindi ou persa e os programas que contam com a participação do público pela sóbria música patriótica.

“Os taliban não nos pediram para mudar nada, nós mudámos os programas por agora, porque não queremos que os taliban nos obriguem a fechar”, disse Khalid Sediqqi, produtor numa estação de rádio privada na cidade central de Ghazni.

“Além disso, ninguém neste país está com disposição para entretenimento, estamos todos em estado de choque”, disse. “Não sei se alguém ainda liga o rádio”.

Durante os 20 anos do Governo apoiado pelo Ocidente, cresceu uma animada cultura popular em Cabul e noutras cidades, com uma mistura de musculação, bebidas energéticas, penteados extravagantes e músicas pop. Soap operas turcas, programas com participação do público e de talentos como o “Afghan Star” tornaram-se grandes êxitos.

“Tóxica”

Para os taliban mais velhos, muitos criados em madrassas (escolas islâmicas) e com anos de experiência de combate e adversidades, a mudança já vem atrasada.

“A nossa cultura tornou-se tóxica, vemos a influência russa e norte-americana em todo o lado, até na comida que comemos, é algo que as pessoas deveriam compreender e [deveriam] fazer as mudanças necessárias”, disse um comandante taliban. “Vai levar tempo, mas vai acontecer”.

Ao longo do país, a mudança tem sido perceptível.

Embora os altos responsáveis taliban tenham dito repetidamente que as suas forças deveriam tratar a população com respeito e não realizar punições arbitrárias, muitos desconfiam ou não acreditam que possam controlar os seus soldados nas ruas.

“Não há música em toda a cidade de Jalalabad, as pessoas estão assustadas e têm medo, porque os taliban têm agredido as pessoas”, disse Naseem, antigo responsável da província de Nangarhar.

Zarifullah Sahel, um jornalista local da província de Laghman, perto de Cabul, disse que o líder da comissão cultural local dos taliban tinha informado a emissora de rádio pública e outras seis emissoras privadas para ajustarem as suas programações para garantir que estava em conformidade com a sharia.

Desde então, os programas musicais e a programação política, cultural e noticiosa que não esteja relacionada com assuntos religiosos desapareceram. E mesmo onde não foram emitidas ordens formais, tem sido clara a mensagem que a era da liberdade chegou ao fim e que não é seguro chamar a atenção.

“Receio que os taliban possam escolher-me como alvo se for visto a usar calças de ganga, camisas ocidentais ou um fato”, disse Mustafa Ali Rahman, antigo funcionário tributário na província de Laghman. “Ninguém sabe o que podem fazer para nos punir”.

Um antigo activista civil na cidade de Mazar-i-Sharif, no Norte, disse que as lojas e restaurantes parecem ter decidido sozinhos e desligaram os rádios. “Não há avisos sobre a música, mas foram as próprias pessoas que pararam.”