A Tapada das Necessidades

Uma vez restaurada em todas as suas componentes, tal como preconizado pelo ante-plano de salvaguarda, e reintegrada organicamente no conjunto monumental de que faz parte, possa a tapada das Necessidades ser desfrutada nos exactos termos em que foi sendo concebida sem prejuízo de poder voltar a ser usada em representação externa do Estado.

1. Terminou no dia 31 de julho a consulta pública sobre o excelente ante-plano de salvaguarda da tapada das Necessidades que o vereador José Manuel Sá Fernandes em boa-hora mandou fazer, em estreita colaboração com a Associação dos Jardins e Sítios Históricos, para aplacar a justificada indignação geral que causou a divulgação das intenções duma empresa privada do sector da restauração à qual teria sido concessionada uma parte do edificado da tapada para nela instalar restaurante, café e loja.

A elaboração deste documento de grandíssima qualidade é portanto a demonstração cabal de que a responsabilidade pela salvaguarda da integridade dum bem patrimonial nacional, como é a tapada das Necessidades, pode confiadamente ser delegada numa entidade autárquica na condição de ela agir em todas as etapas do processo sob supervisão dos serviços competentes da administração central e de mãos dadas com os especialistas e as entidades privadas de interesse público que conheçam não só a história detalhada desse bem como as melhores práticas internacionais de restauro, conservação, mecenato e desfrute sustentável – que é o que felizmente não falta por essa Europa fora. 

Neste caso concreto é, além disso, muito aconselhável refletir sobre o futuro da tapada com os olhos postos na história do conjunto patrimonial de que ela faz parte desde o início e portanto tendo também presente o uso diplomatico que lhe foi dado enquanto parque dum palácio onde foram amiúde alojados visitantes estrangeiros e no qual residiram muitos dos nossos chefes de Estado do século XIX e portanto onde eram constantemente recebidos diplomatas, residentes ou não, quer para entregar credenciais, quer para praticar diligências, quer para partilharem refeições com os anfitriões, quer para participarem em recepções nos jardins – histórico esse que viria a influenciar mais tarde a decisão refletida de instalar o Ministério dos Negócios Estrangeiros no antigo palácio e no antigo colégio.

2. Para melhor se compreender a génese da actual tapada comecemos, no entanto, por lembrar que foi em resultado da emulação acesa com os jesuitas sobre o melhor metodo de ensinar as ciências que o rei D. João V doou aos oratorianos em 1747 não só o prédio em construção na encosta por trás do palácio, ele mesmo também ainda em construção, como a popular ermida de NS das Necessidades e uns terrenos a poente de ambos e a norte do futuro colégio, que mandara comprar dois anos antes a dois particulares para aquela que viria a ser a maior cerca conventual de Lisboa.

O novo oratório foi instalado no referido prédio em maio de 1751 e logo em julho, um ano depois da morte de D. João V, foram iniciadas, na presença do sucessor,  D. José, as conferências da Aula Experimental de Física, que depressa adquiririam um grande prestígio sobremaneira depois de Teodoro de Almeida, na sequência da destruição total em 1755 das instalações do primeiro oratório de Lisboa, o do Espírito Santo, ter tido que ir viver para as instalações nas Necessidades, milagrosamente poupadas.

Quatro anos depois, 1759, dá-se todavia a inesperada inclusão dos colégios oratorianos, que eram sete no continente, na decisão do marquês de Pombal de mandar fechar todos os colégios jesuitas, que eram trinta no continente, o que se viria a traduzir no fecho do das Necessidades em 1767, 26 anos depois de ter começado a funcionar, e no desterro de Teodoro de Almeida para o Porto e depois para França, só tendo voltado a abrir dez anos depois, após a morte do rei e a queda do seu primeiro-ministro, embora se desconheça o destino preciso que entretanto tinham levado os instrumentos científicos que equipavam não só o gabinete de Física Experimental como o Observatório Astronómico – que viria a ser convertido por D. Carlos numa Casa de Regalo e já neste século na sede do gabinete do antigo presidente e então Alto Representante da Aliança das Civilizações da ONU.

Depois dessa interrupção de dez anos e de um segundo período de 25 anos de funcionamento pleno, entre 1777 e 1807, o colégio é atingido pelo impacto brutal da transferência durante catorze anos dos órgãos de soberania e da administração central para a nova capital do reino no Rio de Janeiro, e da presença em Lisboa de tropas francesas e britânicas – tendo o palácio das Necessidades sido a residência do duque de Wellington.

Acresce que, depois de voltar a funcionar em plenitude por um período final de doze anos, e não obstante ter sido na sua afamada biblioteca que, durante quase dois, entre janeiro de 1821 e novembro de 1822, os deputados constituintes eleitos no final de 1820, fundamentalmente 100 do continente e 100 do Brasil, um por cada 30 mil pessoas, redigiram a nossa primeira constituição escrita, e que D. João VI jurou as respetivas bases logo após o desembarque da viagem de regresso do Brasil, em julho de 1821 – acontecimentos que não terão deixado de marcar profundamente um dos mais jovens alunos de então, Alexandre Herculano –, a outrora famosa Aula Experimental de Física não conseguiria sobreviver à extinção definitiva e imediata de todas as congregações católicas masculinas decretada pelo governo de regente D. Pedro IV em maio de 1834, e fecharia para nunca mais reabrir.

Depois destes primeiros 88 anos anos de vida acidentada como montra do verdadeiro método de estudar e hospício de professores, o convento e a respetiva cerca foram naturalmente agregados ao palácio, mediante a sua progressiva conversão em residência complementar e tapada, mas o espírito que presidira à criação por D. João V e por D. José dum colégio científico de referência continuou vivo na prioridade elevada que os seus descendentes deram à proteção das ciências, em especial da medicina, teórica e prática.

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A Tapada das Necessidades está classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1983 NUNO FERREIRA SANTOS

3. Apesar de desde sempre fisicamente separadas por uma rua, o palácio real e o colégio tinham sido recentemente unidos por uma ampla escadaria coberta mandada construir por D. Miguel quando partira as pernas, o que viria a facilitar muito a integração dos dois prédios quando pela primeira vez o palácio real das Necessidades foi residência oficial dum monarca reinante, D. Maria II, praticamente desde que ela chegou em 1833 até que morreu em 1853, com excepção dumas semanas em Queluz logo após o desembarque e de alguns anos em Belém dez anos depois, durante as obras que mandou fazer.

Com efeito, é a partir de 1844 que terão lugar importantes obras de remodelação do palácio e que, tirando partido da abundância de água, tanto a transportada pelo ramal do aqueduto das Águas Livres que atravessa a cerca como sobretudo a duma mina subterrânea, D. Fernando II procede à conversão daquela numa verdadeira tapada real, contratando o paisagista Jean Bonnard para o assessorar na operação de substituição de um jardim barroco afrancesado por um jardim romântico inglês, e duma mata utilitária, pomares e uma grande leira de trigo por uma grande mata ornamental, e à construção entre os dois dum jardim zoológico com uma ampla esplanada, debruçada sobre o vasto relvado que substituíra os canteiros do jardim anterior, e delimitada por uma estufa fria, a Casa Fresca.

Além da remodelação do palácio e da conversão da cerca conventual numa tapada romântica, também o antigo convento foi então adaptado a residência anexa do palácio, o que viria a permitir a transferência do rei viúvo e dos seus outros seis filhos quando o primogénito D. Pedro V subiu ao trono em 1853 e, tal como sua mãe, fez do palácio das Necessidades a sua residência oficial – tendo sido ele a mandar construir o elegante conservatory em contraponto à Casa Fresca, na outra ponta da esplanada do jardim zoológico.

O rei viúvo D. Fernando II e os seus outros filhos ficaram no prédio do antigo colégio até à morte prematura de D. Pedro V em 1861, com apenas 24 anos, na sequência da da rainha D. Estefânia em 1859, com 22 anos e apenas um ano depois do casamento, acontecimentos funestos por causa dos quais também o novo soberano, D. Luís, foi viver para Caxias e, depois do seu casamento, para a Ajuda, de tal forma que só após a morte deste em 1889, 28 anos depois da morte do último monarca residente, o palácio das Necessidades voltaria a ser morada de chefes de Estado, D. Carlos e D. Manuel II.

D. Carlos é o último soberano a usar a tapada das Necessidades ao serviço da representação externa do Estado, de que o último acto ficou célebre: por ocasião do XV Congresso Internacional de Medicina, organizado em abril de 1906 pelo renomado psiquiatra Miguel Bombarda, sete mil convidados do rei foram recebidos no grande relvado da tapada ao som de seis bandas militares.

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4. Em 1916, os serviços internos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que até então tinham estado sempre no Terreiro do Paço, junto dos demais ministérios, são transferidos para as Necessidades, tendo começado por ocupar apenas as instalações do antigo palácio real, vazias desde o exílio do rei D. Manuel II, e em 1952, após a transferência do Quartel General de Lisboa para o palácio Vilalva, em S. Sebastião, e obras de adaptação dirigidas pelo arquiteto Raul Lino, as instalações do antigo colégio são igualmente ocupadas.

A unidade orgânica entre o palácio e o antigo colégio forjada por D. Miguel e D. Fernando II viria a ser muito útil aquando da ocupação de ambos pelo ministério, uma vez que a utilização do andar nobre do palácio real para actos de representação externa do ministro e do primeiro-ministro, e do resto do vasto espaço palaciano para o exercício das demais funções do protocolo de Estado, para a realização de reuniões na antiga biblioteca da rainha, para o armazenamento e consulta por investigadores externos do arquivo diplomatico e do acervo bibliográfico e para o alojamento de outros departamentos da secretaria-geral, requerem o trânsito constante de funcionários nos dois sentidos.

Mas a unidade orgânica entre esses dois prédios e a tapada, igualmente forjada por D. Fernando II, foi desfeita com a cessão ao Ministério da Agricultura da tapada, a qual, com excepção duma memorável recepção dada pelo então ministro Jaime Gama aos seus homólogos da OTAN que vieram reunir-se no Estoril em junho de 1985, praticamente nunca mais voltou a ser usada no quadro da representação externa do Estado.

Depois de em 1988 o ter tentado em vão com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que incompreensivelmente o recusou porque a dívida acumulada à EPAL era de 80 mil contos…, em 1991 o Ministério da Agricultura conseguiu sub-ceder à CML a manutenção dos jardins centrais da tapada, em troca da abolição da obrigatoriedade de porte de cartão de visitante para poder usufrui-la, gesto que, no entanto, com a inclinação natural que ela tem, nunca chegou a gerar a afluência almejada – mesmo depois da abertura recente dum parque de estacionamento subterrâneo na Infante Santo...

Em 2008, perante a anunciada intenção do Ministério da Agricultura de devolver a posse da tapada à Direção-Geral do Património, a secretaria-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros chegou a analisar sem compromisso o quadro duma eventual gestão integrada dos três objectos, tendo para o efeito consultado todas as entidades relevantes, começando por aquela direcção-geral e pelo Igespar, que no ano anterior aceitara dirigir a reabilitação da igreja do antigo convento do Sacramento, para nela ser instalado um auditório para o Instituto Diplomático, e incluindo a GNR, que em virtude da nova lei da Segurança Interna aprovada nesse ano estaria de volta às Necessidades e nesse contexto aceitou fazer a segurança da tapada, tendo para o efeito sugerido a utilização de guarda montada, a Santa Casa, que gere o jardim escola que a tapada alberga, e fora obrigada a cercar o respetivo perímetro com rede para se proteger da insegurança gerada pela abertura indiscriminada dos portões, a EPAL, em virtude da sua jurisdição sobre o aqueduto das Águas Livres, e potenciais mecenas, para o financiamento da eletrificação da tapada e, claro, da já então imperiosa reabilitação, sobretudo do complexo sistema hidráulico, da cobertura arbórea, do edificado e dos caminhos.

Nesse ensejo chegou a ser discutido informalmente com o então presidente do Igespar a eventual criação, depois da reabilitação da tapada e da classificação do conjunto como monumento nacional, dum museu ou duma estrutura equiparada para administrar o respetivo acesso – idealmente dirigida por um historiador das Necessidades do calibre do embaixador Manuel Corte Real, a quem devemos o impecável estado de conservação do palácio e do antigo colégio 

Esse museu, sob tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros, seria responsável pela gestão integrada da abertura ao público do triplo monumento nacional embora em diferentes modalidades compatíveis com o funcionamento e a segurança quer daquele ministério, quer do gabinete do antigo Presidente Jorge Sampaio, quer do Instituto da Defesa Nacional, quer do jardim-escola da SCML.

Ou seja, no caso da tapada, diariamente, por visitas guiadas ao moinho, à cisterna da mina de água que abastecia o palácio, o colégio e a cerca, à mata, passando pelo antigo Observatório Astronómico, ao jardim zoológico, às estufas, ao jardim de buxo e ao túnel subterrâneo de ronda do mecanismo hidráulico que fazia funcionar por gravidade, com água do aqueduto, a fonte monumental que subsiste no jardim em frente ao palácio.

No caso do antigo palácio real, aos fins-de-semana, por visitas guiadas à dupla escadaria triunfal, à sala onde o monarca reinante recebia as credenciais dos embaixadores, à sala onde o chefe da casa militar recebia os beneplácitos dos adidos militares, às outras salas de recepção, à grande casa de jantar, à antiga biblioteca do rei e à antiga biblioteca da rainha e à capela, actualmente integrada na paróquia de Santos-o-Velho.

E, finalmente, no caso do antigo colégio, igualmente aos fins-de-semana, por visitas guiadas à escadaria dos alunos, às salas da Aula de Física Experimental, à escadaria desenhada por Raul Lino, ao que resta da antiga biblioteca e sede das cortes constituintes, à sala dos embaixadores, à escadaria dos oratorianos, à antiga cozinha e à antiga casa de jantar de D. Fernando II – uma vez repostos os vitrais alemães que ele mandou fazer por encomenda e estão hoje em dia armazenados no palácio da Pena…

Não foi, no entanto, preciso o Ministério dos Negócios Estrangeiros tomar nenhuma decisão porque entretanto a CML propôs ao Ministério da Agricultura, ainda em 2008, a celebração dum novo protocolo de sub-cessão de toda a tapada, incluindo uma parte das construções, a fim de nela poder ser instalado um restaurante, objectivo esse que viria a redundar no projeto da empresa que venceu o concurso recente para a respetiva concessão, projeto que tem sido alvo de grande contestação pela agressão que representaria a erecção dum prédio novo no lugar do antigo jardim zoológico, e de um quiosque e respetiva esplanada junto do grande relvado.

5. Possa o debate assim gerado levar à reconsideração do caminho tomado e consequentemente a que, uma vez restaurada em todas as suas componentes, tal como preconizado pelo ante-plano de salvaguarda, e reintegrada organicamente no conjunto monumental de que faz parte, a tapada das Necessidades seja desfrutada nos exactos termos em que foi sendo concebida sem prejuízo de poder voltar a ser usada em representação externa do Estado, sempre que possível lembrando aos visitantes os valores simbólicos de que está carregada, tão importantes para a formação das novas gerações e para o auto-conhecimento das actuais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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