“Escolhas” ou problemas sociais?

Para escamotear o individualismo, a indiferença e a ausência de protecção social, ou, simplesmente, para escaparmos à sombra da exclusão, que caminha ao nosso lado e que fingimos não ver, a ideia de “escolha” converteu-se em argumento para toda a serventia.

A reboque de factores vários, em que se destacam uma exaltação (falaciosa) da ideia de meritocracia e os apelos da sociedade de consumo, o conceito de “escolha” passou a ocupar um lugar central nas nossas vidas e nos nossos olhares acerca do mundo.

Para escamotear o individualismo, a indiferença e a ausência de protecção social, ou, simplesmente, para escaparmos à sombra da exclusão, que caminha ao nosso lado e que fingimos não ver, a ideia de “escolha” converteu-se em argumento para toda a serventia: a pessoa vive na rua porque quer; prostitui-se porque assim o escolheu; a mulher é espancada, entre quatro paredes ou na rua, porque quer; a pessoa droga-se porque quer, não trabalha porque não quer...

E este “porque quer” é proferido, habitualmente, ao compasso do desprezo, da condenação, ou de uma, mais ou menos mascarada, presunção de supremacia moral. 

E, portanto, se “é o que eles querem, deixem-nos estar”. E daí lavamos as mãos e, sobretudo, as consciências e seguimos adiante, transportando, impantes, o estandarte das nossas próprias escolhas (normativas todas, é claro, mesmo quando as reclamamos “fracturantes").

Poder-se-ia – e a tentação é grande, convenhamos – atribuir estas visões e atitudes aos vieses ideológicos que perpassam uma certa retórica populista em manifesto crescimento, mas a realidade mostra que não é assim. 

Estas visões e atitudes, alicerçadas numas hipervalorização e generalização do conceito de “escolha” e numa errónea interpretação do “livre arbítrio”, são transversais no tecido social e percorrem todo o espectro ideológico, com a curiosidade de ser, justamente, nos seus extremos, que tais visões e atitudes mais se evidenciam: de um lado, pela condenação fácil e sumária e por exigências de respostas musculadas e repressoras; do outro, pela evocação sacralizada do relativismo cultural e da liberdade individual e, consequentemente, da necessária legitimação de determinadas “escolhas de liberdade”.

Claro que numa sociedade ideal, as escolhas (e oportunidades) seriam iguais para todos e, por isso, seria pertinente este argumentário. Mas não vivemos em sociedades ideais. Estamos na verdade longe, cada vez mais longe, desse cenário.

Vivemos em sociedades em que as diferenças e assimetrias se tornam patentes logo à nascença e se agudizam, de forma exponencial, nos vários cenários em que decorre a existência individual, desde as comunidades de vizinhança, à escola, ou ao acesso ao emprego. Por tudo isto, esse alardeado conceito de “escolha” revela-se, na essência, um conceito profundamente classista.

A escolha é, de facto, uma decisão individual, isto se entendida apenas, e de modo linear, como o momento de tomada da decisão, ou seja, quando ela é olhada já como uma realidade a jusante.

Sucede, todavia, que essa tomada de decisão resulta de toda uma trajectória de vida pessoal e, na maior parte dos casos, de toda uma história familiar que actuam a montante, e que reduzem de tal forma o leque de opções que a dita “escolha” mais não é do que o único recurso para quem não vislumbra outros horizontes.

Chamar a esta ausência de horizontes uma “escolha” e, consequentemente, normalizá-la, afigura-se-me como uma abjecta legitimação da indiferença e um cruzar de braços, desistente e cobarde, em relação às desigualdades e aos problemas que grassam no quotidiano.

Porque se entendermos todas as situações acima enunciadas (e tantas outras que se lhes assemelham) como “escolhas”, então elas deixarão de ser “problemas sociais” e converter-se-ão em “factos sociais": inevitáveis, ainda que mais ou menos incomodativos.

Esta aclamação da ideia de “escolha” como uma prerrogativa universal, independentemente de ser feita em nome da segurança ou em nome da liberdade individual, coloca-nos perante um arriscado resultado: a crescente desresponsabilização social dos Estados e o adensamento das desigualdades e do fosso entre os que, efectivamente, têm escolha e aqueles para quem a dita “escolha” mais não é do que o fim da linha, num beco estreito e sem saída. 

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