A (des)humanização das sociedades: pobreza e redistribuição

Este artigo é uma homenagem ao ser humano e cientista social falecido há uma semana, o meu colega Alfredo Bruto da Costa.Um cientista social preocupado em produzir conhecimentosobre um dos problemas sociais mais graves das sociedades – a pobreza – mas também em agir.

Os seres humanos nascem com capacidades cognitivas superiores às restantes espécies mas é através dos processos de socialização que se tornam mais ou menos humanos, o que significa que a humanidade é o resultado de um processo de construção social. Ao longo dos séculos, a humanidade não tem evidenciado uma sequencialidade progressiva no aperfeiçoamento dos princípios morais que a tornaria mais humana e, consequentemente, mais sensível a todo o tipo de desigualdades, desde as desigualdades com base no fenótipo (cor de pele, de olhos, de cabelo...), às desigualdades de género, geracionais, culturais, de classe, etc.

A subordinação estrutural de que é vítima uma parte substancial da humanidade, obrigada a viver em condições sub-humanas, está em todas as instituições sociais, embora frequentemente de tal forma naturalizada (dado estar incrustada nas sociedades) ou de tal forma banalizada que a “olhamos” sem efectivamente a “ver”. A pobreza é uma dessas desigualdades aparentemente “gritantes” e evidenciadamente “banalizada”. Há quem defenda que sem pobres as sociedades estagnariam porque a pobreza funcionaria como “mola propulsora” da mudança social, servindo de “motivação” pessoal para a procura de melhores condições de vida e para a mobilidade social ascendente. É assim nos Estados Unidos da América, onde o subsídio de desemprego é perspectivado como um incentivo à falta de iniciativa e, consequentemente, um convite à permanência na situação de desemprego. Mas já não é assim nos chamados países nórdicos, onde os Estados procuram fornecer aos cidadãos e cidadãs uma vivência com dignidade, independentemente da sua situação face ao mercado de trabalho. Esping-Andersen (1990) no seu livro “The three worlds of welfare capitalism”, explica isto muito bem através do “índice de desmercadorização” que o autor criou para medir o nível do estado social em países por si estudados, construindo uma categorização para caracterizar diferentes tipos de estado-providência. Segundo o autor, a desmercadorização ocorre quando a prestação de um serviço é perspectivada como um direito ou quando uma pessoa pode sustentar-se economicamente sem depender do mercado.

Em Portugal, discute-se actualmente o aumento do salário mínimo nacional para 557 euros em 2017, com forte resistência por parte do patronato, alegando, entre outras razões, a perda de competitividade no mercado. Não vou discutir a indignidade humana subjacente a um salário mínimo nacional de 557 euros num país com um custo de vida como o existente em Portugal (basta visitar países como a Bélgica, a França ou o Luxemburgo para verificar que o preço dos produtos alimentares básicos pouco se diferencia dos preços praticados em Portugal quando a disparidade salarial é brutal); vou antes usar uma contra-argumentação ao discurso patronal miserabilista: a redistribuição financeira a montante (ou seja, através do pagamento de salários dignos e compatíveis com sociedades humanistas) permitiria um maior consumo e, consequentemente, uma maior dinamização da economia portuguesa. Quando a redistribuição não se faz a montante, a jusante (pagamento de prestações sociais) os gastos por parte do Estado são mais onerosos a todos os níveis, empobrecendo o Estado e, consequentemente, o país e os portugueses que vivem em Portugal.

Duas das formas de contribuir para a diminuição substancial da pobreza consistem na redistribuição financeira a montante (pagamento de salários dignos) e na diminuição do horário de trabalho (e não no seu aumento), possibilitando que mais seres humanos acedam ao mercado de trabalho assalariado diminuindo o desempego, ao mesmo tempo que permite a dedicação de mais tempo à família, ao fortalecimento de redes de sociabilidade e de laços de solidariedade a todos os níveis, bem como à participação no espaço público. Redistribuição económica, reconhecimento cultural e participação político-cívica na esfera pública são, segundo Nancy Fraser, três dimensões fundamentais da justiça, sem as quais dificilmente se constituirão sociedades menos injustas e, consequentemente, mais humanas.

Desumanizar as sociedades é perigosamente fácil e é à sua desumanização que temos vindo a assistir, com diferentes graus de intensidade; desenvolver valores morais que possibilitem práticas colectivas quotidianas que acentuem a igualdade e possibilitem a desinstitucionalização da subordinação estrutural, desnaturalizando as múltiplas hierarquias sociais, é o caminho para a humanidade se tornar mais humana. Sendo o caminho mais difícil, é o único que permitirá a própria sobrevivência da humanidade enquanto tal e a sustentabilidade do Planeta. Esta é a responsabilidade que nos cabe, enquanto espécie cognitivamente mais desenvolvida e a única capaz de construir valores morais que perspectivem todos os seres humanos como iguais em termos de direitos, de participação político-cívica e de exercício de cidadania activa crítica e humanista. E para isso, erradicar a pobreza é fundamental.

Este artigo pretende ser também uma homenagem ao ser humano e cientista social falecido na sexta-feira, dia 11, o meu colega Alfredo Bruto da Costa. Um cientista social preocupado em produzir conhecimento teórico sobre um dos problemas sociais mais graves das sociedades – a pobreza – mas também em agir no sentido da sua erradicação, actuando coerentemente no espaço público.

 

 

 

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