O novo “anormal”

Inquieta-me esta quase obsessão pelo “normal”, pela sugestão de padronização e de homogeneização que ela encerra.

Surpreende-me e preocupa-me esta recorrente utilização da expressão o “novo normal” ou a “nova normalidade”, para designar as circunstâncias em que todos vivemos e que decorrem da pandemia.

E surpreende-me por três grandes razões: em primeiro lugar, porque uma pandemia não é, nem nunca foi, uma situação “normal”. Poderá, quanto muito e em épocas históricas mais recuadas, ter sido uma situação relativamente comum, mas nem isso a colocou no plano da dita “normalidade”, se a entendermos no sentido que lhe é comummente atribuído, ou seja, “qualidade do que é usual”.

De facto, as grandes epidemias, como as grandes fomes e as grandes guerras ficaram registadas na história, justamente, pelo seu carácter extraordinário e pelos seus efeitos igualmente extraordinários, que contribuíram, na generalidade dos casos, para mudar o rumo dessa mesma história.

Ora, se isto foi verdade em momentos passados e o carácter de excepcionalidade destes acontecimentos os converteu em marcos para a humanidade, qual a razão para que hoje, ao vivermos algo absolutamente inédito – porque não expectável na sua escala e efeitos – querermos revestir essa vivência de uma “normalidade” que ela não tem, nem parece que venha a ter?

Claro que se percebem as intencionalidades subjacentes a esta retórica: o desejo de evitar o pânico colectivo, as convulsões sociais e o descalabro económico, mas estas intencionalidades não retiram perigosidade a esta tentativa de “normalização”, na medida em que abre caminho à banalização do excepcional – desde o controlo e repressão da liberdade e dos direitos, até à legitimação e institucionalização de respostas improvisadas e impreparadas, que arriscam converter-se em soluções definitivas, vantajosas apenas para uma minoria e muito penalizadoras para a maioria – os possíveis efeitos no emprego, com aumento da precariedade e da desprotecção laborais, ou na educação, com aumento do abandono e do insucesso escolares, são talvez os melhores exemplos, porque ambos poderão conduzir à agudização de situações de desvantagem e de desigualdade.

Em segundo lugar, esta assimilação do extraordinário ao normal – novo ou não – afigura-se precipitada, uma vez que o “normal”, tal como o pensávamos, sentíamos e vivíamos, foi o resultado de um processo evolutivo, em que pontuaram conquistas e lutas fundamentais, que não devem ser negadas ou eludidas.

Querer, num curto tão espaço de tempo, estabelecer que a regra (nas vivências e expectativas individuais, sociais, relacionais, profissionais, ou de lazer) passará a ser aquela que emergiu com a pandemia e com as restrições a ela associadas equivale, de certa forma, à negação de todo esse processo evolutivo e, consequentemente, à desvalorização dessas conquistas e lutas fundamentais.

Finalmente, e em terceiro lugar, inquieta-me esta quase obsessão pelo “normal”, pela sugestão de padronização e de homogeneização que ela encerra.

Na verdade, entre as tais lutas fundamentais que nos trouxeram ao presente, destacam-se aquelas que, ao longo da história, nos outorgaram maior liberdade e nos permitiram traçar as nossas trajectórias individuais de maneira mais conforme aos nossos valores, às nossas convicções, ao nosso mérito e às nossas escolhas, ou seja, traçar trajectórias assentes em vivências, aspirações e expectativas diferenciadas e livres.

Nesse sentido, estas lutas outorgaram-nos, em larga medida, o direito a ser diferentes ou, por outras palavras, a sermos nós mesmos.

Ao aceitarmos, de forma abúlica e sem questionamento, esta obsessão “normalizadora” subjugamo-nos, retrocedemos e abrimos mão de uma substancial fatia de liberdade individual.

Num contexto global (pré-existente e acentuado pela pandemia) de desconfiança nas grandes instituições e de recrudescimento das mais variadas formas de extremismo, esta aceitação submissa do dito “novo normal”, ao invés de nos proteger, converte-nos em presas vulneráveis e dóceis para um totalitarismo moral cada vez mais voraz.

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