Neutralidade carbónica exige mais comboios e menos aviões. Europa quer reentrar nos carris

A aposta na ferrovia, assumida ao mais alto nível por todas as instituições comunitárias, tem vindo a ser cada vez mais consensual devido ao contributo que os comboios podem vir a desempenhar para uma mobilidade sustentável.

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Rui Gaudêncio

Os transportes são responsáveis pela emissão de 25% dos gases com efeito de estufa. Se a Europa quiser chegar a 2050 com zero emissões de dióxido de carbono (e até 2030 reduzir essa emissões em, pelo menos, 50%), então a aposta numa mobilidade sustentável é decisiva para atingir esses objectivos.

É por isso que a aposta na ferrovia, assumida ao mais alto nível por todas as instituições comunitárias, tem vindo a ser cada vez mais consensual devido ao contributo que os comboios podem vir a desempenhar para uma mobilidade sustentável.

Não por acaso o Parlamento Europeu aprovou a proposta da Comissão para designar 2021 como o Ano Europeu do Transporte Ferroviário. É que, no tal sector responsável por um quarto das emissões de gases com efeito de estufa, os caminhos-de-ferro são responsáveis por apenas... 0,4% dessas emissões.

A sustentabilidade não é só ambiental. Passa também pela segurança. E neste aspecto a ferrovia também dá cartas: apenas 0,1 mortes por mil milhões de passageiros/km são causadas por acidentes de comboio, enquanto nos autocarros esse indicador é de 0,23 e nos automóveis 2,7. Os aviões, contudo, levam a melhor: só são responsáveis por 0,06 mortos por mil milhões de passageiros/km.

No entanto, “o sector dos transportes foi o que não apresentou diminuições significativas de CO2 desde 1990”, constata a eurodeputada socialista Sara Cerdas, membro suplente da Comissão de Transportes e Turismo do Parlamento Europeu. Por isso, está de acordo com medidas como as que a França tomou de substituir os voos internos ​pelo modo ferroviário. Uma medida seguida também pela Áustria.

“Nós apoiamos tudo isso e queremos ir mais longe, mas tem de haver um bom investimento na ferrovia, sobretudo nas suas infra-estruturas, para que esta possa ser uma efectiva alternativa aos outros modos de transporte”, diz a eurodeputada, para quem, em Portugal, uma medida idêntica à dos franceses poderia fazer sentido nas ligações Lisboa-Porto e Lisboa-Faro. “Eu estudei em Lisboa e ia muitas vezes ao Porto, de comboio. A ponte aérea poderia ser substituída por um comboio de alta velocidade com bons horários e bons preços.” Um investimento, de resto, já anunciado pelo ministro do seu partido, Pedro Nuno Santos, que prometeu uma ligação Lisboa–Porto em alta velocidade.

João Pimenta Lopes, do PCP e da mesma comissão do Parlamento Europeu, diz que esta nova abordagem da UE só peca por tardia. “Não podemos esquecer que se perderam mais de 20 mil postos de trabalho no sector desde a integração na CEE, se perderam mais de 1200 quilómetros de linhas e se fecharam serviços”, diz. E apela à memória: “Será reconhecida ao PCP a sua intervenção em defesa da ferrovia em Portugal e na oposição aos processos de liberalização e de privatização.”

Mas o seu apoio fica-se por aqui. Em tudo o resto discorda frontalmente da forma como a Europa pretende caminhar para a mobilidade sustentável. “Nós temos uma abordagem bastante crítica em torno do fio condutor que norteia estas questões e que não se desliga daquilo que é a política da UE em relação aos transportes, que passa pelo aprofundar da liberalização, deixando à livre concorrência o seu suposto bom funcionamento. Mas não são os mecanismos de mercado que resolvem o problema dos transportes para serem mais verdes, antes se degradam serviços.”

Para o eurodeputado, “na transição verde, o mais óbvio para reduzir os gases com efeito de estufa é a aposta no transporte público, alterando o paradigma do transporte individual”, o que poderá ser feito com uma aposta forte no transporte público, quer através do alargamento das redes, quer na redução do tarifário. “O problema é que em nome das grandes empresas do mercado automóvel, a Europa não quebra esse paradigma e não põe de parte o transporte individual”, afirma.

Por outro lado, “não é claro que a aposta quase obsessiva na viatura eléctrica resolva o problema porque também esta estratégia tem impactos ambientais, que importa quantificar, nomeadamente na produção e eliminação das baterias, que têm uma duração temporal limitada, e na própria troca da frota”. Em Portugal, onde mais de um quarto da população vive com o salário mínimo, a quase obrigatoriedade de trocar de viatura para aqueles que não estão servidos com transportes públicos e dependem do automóvel implicaria também custos sociais e económicos elevados.

Há mais: “Em ambiente citadino, as questões ambientais não se resolvem pela substituição de viaturas a combustíveis fósseis por viaturas eléctricas porque também estas ocupam espaço e provocam congestionamento.”

A solução está, pois, “no serviço de transporte público, no qual se inclui a ferrovia, para o qual há necessidade de mobilizar fundos comunitários para servir, em primeiro lugar, as estratégicas de desenvolvimento, de mobilidade e de coesão territorial de cada país e, depois, numa lógica de cooperação, as ligações com outros países”.

A roda e o carril

João Pimenta Lopes não se mostrou surpreendido com um estudo recente do Comité Económico Social (CES) que revela que a separação entre a roda e o carril não produziu os resultados esperados e que “os maiores e mais bem-sucedidos países europeus na ferrovia optaram pela integração dos gestores de infra-estruturas e operadores de serviços para garantir melhor cooperação e flexibilidade nas operações”.

“Nós fomos críticos dessa desagregação, não só na ferrovia, mas também no sector aéreo onde se fez a separação do handling e se promoveu a privatização dos aeroportos”, diz. “Defendemos a integração da gestão da infra-estrutura e da operação numa entidade única e pública. Não basta que seja única. Tem de ser pública. Para que o sistema ferroviário esteja ao serviço das pessoas, da indústria, da agricultura e do próprio ambiente.”

Mas, quer neste ou noutros sectores, “o PCP rejeita modelos impositivos por transferência de competências da esfera nacional para a esfera da UE que têm vindo a resultar em prejuízos para o país”.

Sobre o modelo para o sector ferroviário, Sara Cerdas diz que não tem elementos suficientes para se pronunciar, mas acha que a avaliação do Comité “é muito boa” e conclui que “se em 30 anos não se atingiu os objectivos, é preciso perceber porque não foram alcançados”.

Quanto ao transporte aéreo na época pós-covid, reconhece que pode haver perda de postos de trabalho. “Ambicionamos que haja sustentabilidade no sector, mas precisamos de ter medidas de curto e médio prazo para o emprego porque a transição ambiental implica extinção de postos de trabalho em actividades mais poluidoras e é preciso formar as pessoas para outras actividades. Não podemos deixar ninguém para trás.”

João Pimenta Lopes não tem ilusões sobre isso. “As ditas transição digital e transição verde têm servido, não para colocar os avanços tecnológicos e científicos a melhorar o serviço público e as condições dos trabalhadores, mas sim para facilitar os processos de concentração e despedimentos”, diz, dando o exemplo, no sector aéreo, da Lufthansa, British Airways, KLM e Air France, que “concentraram o mercado em benefício dessas companhias de bandeira das grandes potências europeias”. Nesse sentido, avisa que o pós-covid pode acelerar os processos de concentração no sector e levar à aglutinação da TAP.

Por fim, o transporte marítimo. Sara Cerdas é madeirense e foi uma das negociadoras da nova estratégia marítima para a Europa. Lamenta que, ao contrário das Canárias, que têm uma carreira de passageiros regular com a Península, a Madeira não tenha um ferry a ligar a ilha ao continente que, além de mercadorias, contemple também o transporte de passageiros. Esse segmento de mercado, ao não viajar de avião, daria também um contributo positivo para a redução de emissões.

Portugal e Espanha em contraciclo

No Ano Europeu do Transporte Ferroviário, com a Europa a querer que os caminhos-de-ferro sejam um instrumento para a coesão territorial e de combate às alterações climáticas, com os exemplos de países (França e Áustria) que optam por trocar o avião pelo comboio nos percursos domésticos, com o renascimento dos comboios nocturnos em França, Alemanha, Áustria e nos países nórdicos, com a Alemanha a liderar o relançamento da rede dos Trans Europ Express, Portugal e Espanha estão em contraciclo.

Com a suspensão dos comboios Sud Express (Lisboa–Hendaya) e Lusitânia Expresso (Lisboa–Madrid), as relações ferroviárias entre os dois países quase desapareceram, fazendo das suas capitais casos raros na Europa continental. Nunca, desde o século XIX, houve tão poucos comboios entre Portugal e Espanha.