A centralidade do transporte público na mobilidade

Os problemas da mobilidade e dos seus impactos não se resolvem trocando viaturas individuais a combustão por viaturas individuais eléctricas

A mobilidade é um factor estruturante no desenvolvimento das sociedades, da sua coesão territorial e social, qualidade ambiental, dinamismo económico, da capacidade de conectar indivíduos, comunidades, o sector empresarial e diferentes regiões e culturas. Deveria, por isso resultar em opções estratégicas e de investimento determinadas pelo interesse público, a satisfação das necessidades das populações e o desenvolvimento soberano, económico e social, dos Estados. As políticas de mobilidade e as políticas de ordenamento do território condicionam-se mutuamente. Umas e outras determinam a estruturação e acesso ao tecido produtivo, a serviços ou à habitação, entre outros, no território e impactam na organização social e económica da sociedade. A maior ou menor articulação estratégica de ambas são determinadas pelas opções de desenvolvimento e os interesses que servem. Não são, por isso, neutras.

O conjunto de políticas que a União Europeia (UE) impôs e está a promover no domínio da mobilidade e transportes é contrária aos interesses nacionais, visando a desregulação, a liberalização e a centralização do sector dos transportes, com consequências com que as populações todos os dias se confrontam na degradação dos serviços e das infra estruturas e que têm contribuído para a individualização da mobilidade.

Assente nesta lógica está a comunicação da Comissão relativamente a uma “Mobilidade Sustentável e Inteligente”, pintada com muitas demãos de verde, mas focada em garantir a rentabilidade para aqueles que fazem da mobilidade e transportes - e agora do combate às alterações climáticas - um negócio. Num documento de quase 30 páginas, é de registar a limitada referência a transportes públicos colectivos, ou a ausência da relação entre as questões da mobilidade e transporte com os modelos de produção e o consumo de proximidade.

Sem esquecer os sectores marítimo, da aviação e ferroviário, referidos sempre na lógica do aprofundamento do mercado e da liberalização do sector, procurando assaltar o que ainda sobra no domínio público ou no controlo soberano dos Estados, a comunicação tem particular enfoque no transporte rodoviário.

Os impactos em termos de emissões das viaturas a combustão não são despicientes. Em 2017, as emissões da mobilidade rodoviária representavam cerca de 20% das emissões na UE, grosseiramente distribuídas entre 15% de viaturas ligeiras, e 5% de viaturas pesadas. São impactos significativos que importa reduzir.

Em nome da dita transição verde, avançam-se propostas para pôr termo à produção de veículos a combustão até 2035, eventualmente antes, com a expectativa da Comissão de que, até 2050, a totalidade das viaturas a circular na UE não produza emissões. A indústria automóvel europeia (com maior peso na Alemanha e França) esfrega as mãos ante a perspectiva de uma renovação total da frota de viaturas individuais a circular a médio prazo e dos apoios públicos de que possam beneficiar.

Ausente desta equação permanece uma avaliação que, sem questionar a necessidade de uma transição progressiva para viaturas menos poluentes, demonstre os impactos deste processo. Impactos de natureza ambiental, associados ao abate/renovação da frota ou à produção e posterior eliminação das baterias. Impactos de natureza socioeconómica, pelos custos que imponham às populações pela necessidade de troca de viatura particular em função de restrições futuras à circulação de viaturas a combustão. Ora, se é certo que o transporte individual é altamente ineficiente (alguns dados apontam para que em média, um automóvel ligeiro tenha uma ocupação de 1,5 passageiros, esteja 92% do seu ciclo de vida parado, 1% em congestionamentos de trânsito e 1,5% à procura de parqueamento, e apenas 5% desse tempo de vida em condução), não é menos certo que, para as populações, a ausência de transportes colectivos que se adeqúem às suas necessidades lhes impõe o recurso ao transporte individual.

Os problemas da mobilidade e dos seus impactos não se resolvem trocando viaturas individuais a combustão por viaturas individuais eléctricas. A resolução destes problemas exige o reforço no investimento público no transporte colectivo e nas redes de transportes.

Uma exigência que requer a promoção da multimodalidade a nível local e regional, dando continuidade à redução do preço dos passes sociais em todo o território nacional; o alargamento da oferta e o correcto planeamento económico, incluindo das necessidades de produção nacional de comboios, autocarros e embarcações; a expansão da rede ferroviária de acordo com as necessidades do país; a criação de um operador rodoviário público nacional; o reforço das empresas públicas de transportes sem constrangimentos vindos de fora; o direito a utilizar sem imposições os recursos provenientes dos fundos comunitários. Uma exigência indissociável da reivindicação de melhores serviços públicos, da defesa dos direitos dos trabalhadores, e do direito soberano ao desenvolvimento económico.

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