A espera

O cansaço derruba-nos. Impotentes.

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"Nesta sala somos todos iguais. Medimo-nos pela espera." Mag Rodrigues

O homem é trazido por um bombeiro. Chama-se Narciso. Está pálido, a palidez da doença longa, mas o que sobressai nele é a serenidade. Espera com calma que alguém o leve para mais um exame. O bombeiro, ainda na recepção, pede em voz alta: “avisem-me 45 minutos antes para me fazer à estrada”. Dizem-lhe que sim. Há uma despedida breve entre o bombeiro brioso na sua farda e o Narciso na cadeira que o transporta. A vida, certamente, já terá andado sobre rodas. Agora é a cadeira.

Chegam a esta sala dezenas de pessoas que trazem a espera vincada no rosto. Espera-se pelo resultado do exame. Espera-se que alguém os venha buscar para devolver a casa ou a uma ideia próxima de casa. Um regresso. Espera-se por mais vida. Viver mais seja lá em que circunstâncias for. Espera-se que alguém olhe para nós muito antes de pensarmos que alguém olhará por nós. Pelos nossos. Esperamos que os minutos passem sem que a angústia não nos devore. Que um riso nos distraia. Faltam esses risos nas salas de espera. O silêncio é solene e curvamo-nos perante o que não sabemos decifrar: medo ou respeito?

O Sr. Narciso rodopiou na cadeira de rodas levado pela enfermeira Tânia que espalha o amor nesta área: é nova e bonita. O sorriso chega aos olhos. Há pessoas para quem a máscara é transparente: não ofusca o sorriso. Entretanto chegou um neto a acompanhar os avós. Acompanha-os mesmo: fala com eles, faz perguntas, soletra o exame que a avó Ana vai fazer. Pergunta ao avô pelo coração. O coração ainda bate.

Apetece-me abraçá-lo e pedir-lhe para que nunca deixe de ser assim. Confio neste cuidado que está ali com ele e que aposto que sempre esteve. Há factos que nos mudam mas muito do que somos já vem cedo connosco. Tarda a sensatez em quem nunca parou para perguntar: o que te dói?

Nesta sala somos todos iguais. Medimo-nos pela espera.

Enterneço-me com a bondade em pequeníssimos gestos: o cuidado de explicar a alguém com detalhe onde é a casa de banho. Como se chega ao andar de cima. Como se deve preparar para o que se segue.

Do outro lado do espelho, na televisão, amontoam-se rodapés de notícias tristes. A montanha russa em que a nossa vida se tornou: uma guerra disseminada que está por todo o lado.

São raros os dias em que não me lembro do actor brasileiro Flávio Migliaccio que na sua nota de suicídio, tão lúcida, dizia: “a humanidade não deu certo”. Repito-me isto quase todos os dias. Até dar certo. Vamos dar certo ainda?

O que passou a faltar à humanidade é somente o humanismo. A base do que nos faz gente distinta das outras espécies. Ligas para uma empresa que já teve uma pessoa a dizer-te “boa tarde” e tens agora números a empurrarem-te para um labirinto maquinal de onde facilmente desistirás. O humanismo é uma máquina operada à distância.

Os rodapés encavalitados da televisão não dão uma boa notícia. Nem sobre a selecção que já não joga. São os números que nos dizem: país tu já foste o melhor e agora és o pior outra vez. E isto já ouvimos muitas vezes.

O cansaço derruba-nos. Impotentes.

D. Ana entrou agora para o exame e o Sr. Narciso ainda não saiu. Podia ficar aqui o dia inteiro a vigiá-los tentando sorrir-lhes com os olhos. Mas o nosso olhar nem se cruza. Hoje, e se não olhar para a televisão, direi que a humanidade está a dar certo. Nem que seja só por estas horas enquanto o neto fala com o avô, a recepcionista aponta a casa de banho mais próxima e a enfermeira Tânia espalha um sorriso que varre a área onde estamos.

Estamos à espera. Também que a humanidade dê certo. Que as máquinas e os déspotas que controlam o mundo não nos derrubem.

Talvez Flávio, se não tivesse ido embora mais cedo, sorrisse hoje um bocadinho.

Há partes sérias da humanidade que ainda funcionam.

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