Quem cuida de quem cuida das nossas crianças?

Com a falta de recursos e condições materiais com que se debatem as respostas de acolhimento, os cuidadores têm, ainda, que ser imaginativos e criativos na gestão dos problemas e na procura de soluções.

Estima-se que existam aproximadamente 4 mil cuidadores (técnicos, educadores e auxiliares) em cerca de 399 Casas de Acolhimento para Crianças e Jovens em Perigo. Estes profissionais são os cuidadores de cerca de 6200 crianças e jovens colocados em acolhimento residencial, pelo Estado, para sua proteção.

A pandemia tem exigido muito tanto destas crianças como dos seus cuidadores. Estes profissionais assumiram a responsabilidade de continuar a cuidar destas crianças durante os confinamentos, em períodos de quarentena e quando doentes. Sublinhe-se que já antes da covid-19 os cuidadores se viam sobrecarregados no seu dia-a-dia. O seu número é muitas vezes reduzido para a quantidade e necessidades das crianças e jovens de quem têm de cuidar, trabalham por turnos e são extremamente mal pagos: os educadores recebem o salário mínimo ou pouco mais do que isso e o valor pago aos técnicos, de acordo com a tabela da CNIS, é igualmente ridículo.

É suposto estes cuidadores serem disponíveis, flexíveis, responsáveis, tolerantes, firmes, afetivos, autoconfiantes, sensíveis, estáveis e maduros emocionalmente, capazes de trabalhar em equipa, com competências sociais e capacidade de promover o desenvolvimento e a autonomia das crianças e jovens acolhidos. Espera-se que sejam conhecedores e respeitadores dos direitos da criança, da legislação que rege a promoção e proteção infantil e do funcionamento do sistema de proteção. Exige-se que saibam acompanhar as crianças na escola, tenham noções de psicologia do desenvolvimento, das consequências das experiências adversas precoces e do trauma no comportamento infanto-juvenil e que conheçam e respeitem o modelo de intervenção adotado pela casa de acolhimento.

Com a falta de recursos e condições materiais com que se debatem as respostas de acolhimento, os cuidadores têm, ainda, que ser imaginativos e criativos na gestão dos problemas e na procura de soluções.

Paradoxalmente, são mal vistos e não lhes é dado o devido valor. Sentem-se desapoiados e desconsiderados. Para isso contribui o facto de as casas de acolhimento serem frequentemente faladas pelas piores razões e estrategicamente esquecidas no resto do tempo (tal como as crianças e jovens que lá vivem). Ninguém gosta de pensar nesta realidade. Estas crianças são invisíveis e não têm voz. O mesmo acontece com os seus cuidadores.

A vida destes cuidadores não é fácil mas a sua situação reflete-se na vida das crianças em acolhimento e prejudica-as gravemente. Hoje em dia, ninguém quer ser cuidador numa casa de acolhimento e aqueles que abraçam esta missão rapidamente desmotivam e se arrependem. Logo, a rotatividade nos quadros de pessoal destas casas é enorme. Este facto é gravíssimo: a principal componente do trabalho de um cuidador é criar relação com as crianças acolhidas. Só existindo cuidadores disponíveis para se constituírem como figuras securizantes e modelos de comportamento será possível ajudar estas crianças a ultrapassar as adversidades que vivenciaram no passado e, assim, proporcionar-lhes um melhor futuro. Com a saída de um cuidador quebra-se este laço. Estas separações sucessivas de adultos significativos levam a criança a ter cada vez mais dificuldades em confiar no “outro” e pode hipotecar as suas hipóteses de recuperação face a traumas passados, acrescentando ainda mais perdas a um caminho muitas vezes pautado pela incerteza e pelo abandono.

Se há já muitos anos estes cuidadores são sacrificados, durante a pandemia foram autênticos heróis. A adoção de equipas-espelho, se bem que necessária para evitar contágios, veio alterar significativamente o funcionamento das equipas, com impacto nas rotinas e estruturas de suporte que tanto contribuem para garantir o saudável desenvolvimento das crianças em acolhimento. Esta nova organização, as baixas médicas, quarentenas obrigatórias e licenças de assistência a terceiros, levou à diminuição do ratio cuidador/criança em cada turno. As aulas online e a proibição das idas a casa, pelo apoio adicional às crianças que exigiram, vieram complicar ainda mais as coisas dentro de um contexto já por si difícil.

Com a pandemia, muito se tem falado do papel dos profissionais de saúde e daqueles que trabalham em lares de idosos. No entanto, destes profissionais, que cuidam 24h por dia, 365 dias por ano das crianças e jovens que são responsabilidade do Estado, ninguém fala, ninguém lhes agradece, ninguém lhes bateu palmas à janela.

Os médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica, funcionários de lares de idosos, professores, técnicos da Segurança Social e das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens... já estão todos vacinados contra a covid-19. Mas os cuidadores das casas de acolhimento nunca foram considerados população de risco, ficaram de fora do plano de vacinação. Salvo exceções regionais ou aqueles que já estão dentro das faixas etárias que podem inscrever-se para voluntariamente tomar a vacina, muitos cuidadores continuam, hoje, sem ser vacinados.

Esta é mais uma escandalosa e gritante injustiça que demonstra o desprezo a que está votada esta classe. Os cuidadores estão esgotados, desmotivados e sentem-se abandonados e desvalorizados.

A prática diária no cuidado das crianças e jovens em acolhimento exige interação próxima e diária, abraços protetores e toque afetuoso. É facilmente compreensível que o grau de segurança dos cuidadores na realização do seu trabalho aumentará consideravelmente após a sua vacinação. Não se trata apenas de imunizar um grupo de profissionais essenciais, a fim de evitar que surtos em casas de acolhimento gerem situações altamente complicadas de resolver. Trata-se de, apesar de tarde, fazer alguma justiça a quem cuida das nossas crianças. É pedir muito pouco para quem tanto dá.

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