Um mundo às avessas

Há acontecimentos que por si só valem vários compêndios sobre as relações entre a política e o espectáculo desportivo. A final da Champions League ocorrida no Porto é um desses acontecimentos. Expõe de uma forma exemplar o modo como os diferentes poderes se relacionam: governamentais, partidários, autárquicos e desportivos.

O que os titulares de alguns destes poderes afirmaram, antes e após o evento, deveria ser de estudo obrigatório em qualquer escola de ciência política, porque evidencia à exaustão como a nobreza da política pode sucumbir ao simples rigor de uma avaliação casuística ou, para não ser muito severo, ao elementar bom senso.

Uma das maiores perplexidades deste tempo reside precisamente no facto de que uma parte significativa dos que censuram o facto do futebol se ter transformado num negócio, procurarem no futebol precisamente o que condenam: o negócio dos interesses políticos e partidários. Um traço que é comum à generalidade das diferentes famílias políticas. E a culpa não é, como tantas vezes se afirma, do futebol. Porque foi a política que o procurou muitas vezes cedendo nas orientações, regras e princípios que ela própria determina.

O problema não reside no facto de tratar o espectáculo desportivo do futebol com a elevação, a importância e o respeito que ele merece. E no que representa para o país. E não se trata sequer de ignorar o valor potencial de acolher um grande evento desportivo. Mas no facto da decisão política ser construída numa base que não é reconhecida ao universo desportivo em geral e conflituar com orientações nacionais para o mesmo tipo de situações.

Receber em Portugal um evento desportivo daquela dimensão foi, na sua génese, um acto político que ultrapassou em muito o poder desportivo e que foi decidido e reconhecido ao mais alto nível da governação com generalizado respaldo partidário. Se isto em si mesmo decorre de uma legitimidade que se não contesta é óbvio que no momento do balanço não se pode enjeitar responsabilidades ou transferi-las para quem se limitou a cumprir as ordens que recebeu ou que cumpriu o que era sua obrigação garantir.

E garantir o que é óbvio num grande evento desportivo: os efeitos no espaço público e nas respectivas dinâmicas de uma competição que não se limita ao terreno do jogo e à envolvente do público no estádio. Separá-los seria, à partida, remeter o espectáculo desportivo a um mero entretenimento circunscrito a quem está no espaço da competição. Não o é, e todas as evidências o confirmam desde logo o de se o apresentar como um produto atractivo em vários domínios extracompetição pelos efeitos que pode ter, designadamente, nas economias dos países anfitriões.

É certo que na vida social há dinâmicas, ocorrências, imprevisibilidades que nenhum planeamento consegue acautelar e que a complexidade das situações faz emergir. Antecipar riscos é um exercício elementar de bom senso, mesmo sabendo que a complexidade das situações não garante a imunidade da sua ocorrência.

Não discutimos se o ocorrido no Porto poderia ou não ser evitado. Essa será sempre uma avaliação que quem domina todas as variáveis da situação poderá fazer. O que se nos afigura relevante é a avaliação política do ocorrido.

Uma coisa temos como certa: trata-se de uma situação que tem amplos danos para todo o desporto, para a construção da sua identidade social, integridade, reputação e valor na sociedade portuguesa, mas também para a política como actividade que importa proteger e valorizar, ainda mais, num contexto em que derivas populistas e antidemocráticas a ameaçam.

Nem tudo correu bem, disse o primeiro ministro. E lembrou a abertura das fronteiras facto que o próprio seguramente conhecia no dia em que se anunciou o evento no Porto. É pouco para tanto que haveria para falar. Mas é assim a política. Umas vezes palavrosa.  Outras parcimoniosa.

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