Comedores Compulsivos Anónimos: “A nossa droga de escolha é a comida”

Comer para encher. É o que sente quem come sem controlo que, para recuperar a saúde física e psicológica, conta com os Comedores Compulsivos Anónimos.

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A história de Maria (nome fictício) com a compulsão alimentar remonta ao início da adolescência e à “obsessão pela magreza”. Ora comia compulsivamente, ora fazia dietas rigorosas para voltar ao peso anterior. Ao fim-de-semana, perdia completamente o controlo: começava a comer na sexta-feira ao final do dia e só parava no domingo à meia-noite. “A partir do momento em que começava a comer, não me controlava”, recorda. O comportamento durou vários anos, numa espécie de ritual.

Na adolescência, reaviva, achava que só gostariam dela se fosse mais magra. Ao espelho via uma imagem que não correspondia à realidade, o que está relacionado com dismorfia corporal, comum em quem tem uma compulsão alimentar. A certa altura, deixou mesmo de comer e passava os dias fechada no quarto. A família não compreendia o comportamento da adolescente. A própria também não.

Até então, não conseguia entender “porque é que começava a comer e já não conseguia parar”. Se, por exemplo, fosse comprar pão para a família toda, comia-o todo pelo caminho. Ficava envergonhada com o comportamento que tinha, sem justificação.

Só descobriu a verdadeira dimensão do transtorno quando, numa viagem a Londres, lhe falaram de uma reunião de Comedores Compulsivos Anónimos (CCA). “Quando fui à reunião, a identificação foi total. Aí percebi que não era diferente das outras pessoas. Afinal, tinha a doença de comer compulsivamente”, admite.

No regresso a Portugal, frequentou reuniões dos Alcoólicos Anónimos (AA) e dos Narcóticos Anónimos — até conseguir trazer para Portugal os Comedores Compulsivos Anónimos, uma irmandade destinada a quem sofre de compulsão alimentar, um transtorno do qual é obrigatório falar em Dia Mundial da Obesidade, que se assinala hoje, apesar de nem todos os casos estarem associados a esta patologia.

Como, aliás, é o caso de Maria que, ainda adolescente, ouviu dizer que “se pusesse os dedos na garganta, vomitava e saía tudo” — até a culpa. Provocar o vómito tornou-se, assim, um hábito diário, que manteve inclusive durante a gravidez. “A maior parte das pessoas não sabia que fazia isso, não se apercebiam. Era uma coisa só minha, um segredo meu”, lamenta.

Pelo contrário, Ana (nome fictício) chegou a pesar mais de 100 quilos. Hoje, recorda que tinha controlo sobre tudo na sua vida, excepto sobre a comida. Até descobrir os CCA, onde, por fim, assumiu: “O meu nome é Ana e sou comedora compulsiva”.

No entanto, até aí chegar, o caminho foi doloroso, tendo atingido um pico em Abril do ano passado. Ana estava a passar por uma fase difícil da compulsão alimentar, aliada a outros problemas de saúde e à obesidade. Já tinha tentado de tudo para perder algum peso, desde planos alimentares até terapia, internamentos e hipnose.

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Mas, à semelhança do que acontecia com Maria, quem conhecesse Ana socialmente não se aperceberia da verdadeira dimensão do problema. “Quem me visse a comer, nem percebia como é que engordava. Gosto de legumes, gosto de sopas, gosto de saladas, comida boa e saudável”, relata. O cenário “descarrilava” à noite. Quando digo descarrilar, é comer quantidades astronómicas de comida, até ficar maldisposta, ficar zonza, explica. Relata episódios de compulsão de madrugada, em que saía de casa para ir à bomba de gasolina comprar o que lhe apetecia comer, ou ia mesmo cozinhar.

Esses episódios de compulsão eram, frequentemente, cautelosamente planeados: “Hoje quero comer. Portanto, vou despachar toda a gente que possa aparecer em minha casa, passar no supermercado, fechar-me em casa e vou comer”, assume Ana, que descreve a compulsão alimentar como “uma doença que sobrevive muito na solidão”. No dia seguinte à compulsão, jurava nunca mais fazer aquilo e sentia-se “um lixo”. “Obviamente que, à noite, fazia tudo outra vez”, admite.

Comer para encher

Era uma bola de neve, dolorosa, porque “não existe nenhum prazer num episódio de compulsão”. Quem sofre de compulsão alimentar, come para apaziguar as emoções. Nesse momento, apenas sente alívio. Depois, surge a vergonha e o arrependimento. “Não sabia pôr um travão àquilo”, confessa. “Às vezes, as pessoas perguntavam-me qual era a minha comida favorita e não sabia dizer. Comia para me encher”, conta Ana. Um quadro comum a quem sofre do distúrbio, mas que pode atingir um patamar dramático: há quem coma comida crua, mal cozinhada, congelada, estragada ou directamente do lixo.

Para Ana e Maria, os CCA foram a solução para a compulsão alimentar. Não são um clube de dietas, como fazem questão de frisar, nem sugerem planos alimentares. O programa tem uma base espiritual e começa com um passo decisivo: admitindo a impotência perante a comida, abster-se do acto de comer compulsivamente, enquanto se trabalha na direcção de manter um peso corporal saudável. Além do anonimato, existem outras tradições fundamentais, como não mencionar centros ou clínicas de tratamento, e quando falam de comida também não entram em detalhes. Ou seja, se alguém contar o prazer que sentiu ao comer uma pizza, pode perturbar outros comedores compulsivos.

Todas as reuniões de CCA começam com a leitura dos “Doze Passos”, em tudo semelhantes aos dos AA, mas onde a palavra álcool é substituída por comida. Aliás, o funcionamento da irmandade — presente em mais de 20 países — é o mesmo dos AA: não existem mensalidades, são auto-sustentados através das suas próprias contribuições, não estão ligados a nenhuma organização pública ou privada, movimento político ou doutrina religiosa. No fundo, “é uma irmandade de indivíduos que, através da partilha de experiência, força e esperança estão a recuperar-se do comer compulsivo”, resume Maria, uma das fundadoras do projecto em Portugal.

Antes da pandemia, as reuniões de CCA aconteciam uma vez por semana na Igreja de São João de Deus, em Lisboa. Nessa altura, a reunião tinha sete ou oito membros. Agora, reúnem-se, via Skype, três vezes por semana. E o grupo virtual tem mais de 50 membros, ainda que nas reuniões apenas compareçam 13 a 14 pessoas — nem sempre os mesmos, já que não há presença obrigatória.

O desafio da abstinência

O último ano de pandemia foi particularmente desafiante para os comedores compulsivos. “A nossa droga de escolha é a comida. E, agora, estamos sempre com comida ao pé de nós. Num dia normal, tomávamos o pequeno-almoço, saíamos de casa, apanhávamos transportes e íamos trabalhar. Como tínhamos outras coisas para fazer, não pensávamos tanto em comida”, relata Maria. Com os confinamentos e a nova rotina de teletrabalho, a comida está sempre à disposição e a abstinência é uma provação ainda maior.

Abstinência é um conceito complexo para os comedores compulsivos. Se para um alcoólico, a abstinência passa por não consumir álcool, e para um toxicodependente por não consumir drogas, para quem sofre de compulsão alimentar o desafio é hercúleo. Inicialmente, Ana não conseguia compreender como se podia abster de comer.

Para os comedores compulsivos, abstinência é abster-se do acto de comer compulsivamente. “Ao contrário de qualquer outro adicto, não podemos parar de comer. Um alcoólico não precisa do álcool para nada, assim como as pessoas que são viciadas em droga — podem simplesmente pôr isso de lado na vida deles e nunca mais o experienciar. Enquanto, alguém que coma compulsivamente tem de continuar a comer”, explica Ana. Passam a ser alimentos proibidos todos os que desencadeiam a compulsão.

“Uma doença de sentimentos”

Para Maria e Ana, o que distingue os Comedores Compulsivos Anónimos de tudo o que haviam tentado é o sentimento de irmandade, de pertença e bem-estar. As reuniões, reconhece Maria, ajudam-na também a que não se esqueça da doença: “se me afasto da reunião, começo a achar que não tenho problema nenhuma, que sou igual às outras pessoas, e começo a comer outra vez compulsivamente”. É um cenário frequente no grupo, onde novos membros entram e saem constantemente.

Nas reuniões — ainda que ninguém seja obrigado a fazê-lo — partilham o que estão a passar, as dificuldades, mas também as vitórias. “Isso faz com que nos sintamos aliviadas, por não sermos esquisitas ou diferentes. “Temos ali um grupo de pessoas igual a nós”, sublinha Maria. Ana concorda: “É uma rede de suporte muito grande. Falo com gente de CCA todos os dias”. Porque muitas vezes, falta a compreensão em casa, já que “a família não tem este problema”.

Para Maria, deixar de provocar o vómito foi uma das suas grandes vitórias. “Quando deixei de vomitar, disseram-me ‘estás a começar a lidar com os sentimentos’. Comecei-me a aperceber que isto é uma doença de sentimentos”, sublinha. Primeiro de tudo, importava perceber as emoções. Enquanto as emoções não estivessem bem resolvidas, a comida seria o refúgio para todos os problemas. Já Ana sente-se mais saudável — física e psicologicamente.

Nesta caminhada pela recuperação, o papel dos padrinhos e madrinhas é crucial. Quem são os padrinhos e madrinhas? “Uma pessoa que tem o que a gente precisa”, descreve Ana. É alguém que orienta e ajuda a trabalhar os Doze Passos, que está disponível sempre, independentemente do dia ou da hora, quase como um terapeuta 24 horas por dia, que entende “o desespero”.

No fundo, padrinhos, madrinhas e afilhados unem-se pela fraqueza — “o segredo do sucesso programa”. “É a fraqueza e não a força que nos une uns aos outros e a um poder maior, e de que, alguma maneira, nos dá a capacidade de fazer aquilo que não conseguiríamos fazer sozinhos”, pode ler-se numa das leituras de CCA. Fracos? Sim, mas nunca sozinhos na batalha contra a compulsão alimentar.

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