A “droga do século XXI” financia a cultura em Portugal

Mais chocante é sabermos que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa efectuou um estudo que revela que 76,6% dos jogadores de raspadinha pertencem à classe social baixa ou média-baixa. São estas as pessoas que vão financiar a falta de investimento deste Governo na cultura em Portugal?

Foto
Miguel Manso

No Dia Internacional dos Museus, que se celebrou a 18 de Maio, o Governo lançou, em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a lotaria instantânea do património cultural, anunciada em Outubro de 2020. A Lotaria do Património Cultural, afirma o Governo, é uma raspadinha como outra qualquer. No entanto, a diferença está no beneficiário.

A verba arrecadada com a compra destas raspadinhas é integralmente atribuída ao Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, destinando-se a despesas com intervenções de salvaguarda e valorização patrimonial.

Ora, que melhor maneira de homenagear a cultura do que apresentar o tão esperado financiamento? Será uma luz ao fundo do túnel para todos os que defendem 1% do Orçamento do Estado? Ou mesmo uma vitória para todos aqueles trabalhadores do sector que viveram um ano de 2020, e ainda atravessam um ano de 2021, com restrições ao acesso a cultura devido a pandemia?

Parece que não. Esta medida não só não vem colmatar as dificuldades que o sector atravessa, como não demonstra uma clara opção do Governo em financiar a cultura. Pelo contrário, alicia os portugueses a suportarem, mais uma vez, de uma nova forma, os custos da salvaguarda do património que é uma obrigação do Estado, passando assim, de certa forma, a responsabilizar a população por incentivar ou não este apoio.

Sabemos ainda que esta medida existe noutros países europeus, como França. Vale a pena reflectir que, segundo o Eurostat, a França aloca cerca de 1,1% à cultura, enquanto Portugal se fica pelos 0,6%. Não deveria o Governo estrear o apoio à cultura com um consistente financiamento e concepção estratégica para o sector, antes de avançar com medidas que deveriam ser apenas analisadas numa segunda fase de desenvolvimento desta estratégia?

notícias que mostram como o Centro de Apoio a Toxicodependentes (CAT) tem vindo a receber cada vez mais pedidos de ajuda relativos ao vício em raspadinha, sendo estas vistas por alguns psiquiatras como a “droga do século XXI”. Esta afecta principalmente as classes mais vulneráveis, sobretudo os idosos, que encaram um jogo como uma distracção e uma forma de ganhar dinheiro.

Mais chocante ainda é sabermos que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa efectuou um estudo que revela que 76,6% dos jogadores de raspadinha pertencem à classe social baixa ou média-baixa. São estas as pessoas que vão financiar a falta de investimento deste Governo na cultura em Portugal?

Se for esta a ideia do Governo, tornar a cultura num vício, que seja para ser um “bom” vício de fruição e expansão da cultura para todos. Mas não para fazer depender o seu financiamento de um vício que intoxica a sociedade moderna e assim também a cultura em Portugal.

As dúvidas sobre esta medida são de tal ordem que o presidente do Conselho Económico e Social (CES), Francisco Assis, já fez saber que vai promover um estudo sobre o impacto social do vício da “raspadinha” e vai informar o Governo dos resultados. Ao que parece para tentar demover o Governo de dar continuidade a esta medida. Não deveriam soar alarmes? Pois parece que não, ou pelo menos para o Governo não há sinal de alarme ou dúvidas sobre a medida.

Assim, a partir de agora, está nas bancas a Lotaria do Património Cultural, a nova forma deste Governo financiar a cultura em Portugal. Retirando mais dinheiro dos contribuintes, principalmente aos mais pobres.

Num país em que muitos dos que irão contribuir para esta raspadinha continuam a não ir a um teatro, museu ou exposição por falta de capacidade económica e de literacia cultural, que claramente continua a não ser um objectivo para este Governo.

É caso para dizer: os pobres que paguem a crise. Neste caso, a crise da cultura em Portugal é paga por quem menos pode. A cultura merece muito mais, mais visão, mais investimento e mais respeito.

Sugerir correcção
Comentar