Gestão pública vs PPP. Alguma coisa vai ter de acontecer

Concordando-se com a prerrogativa de o Estado contratualizar com o setor privado sempre que tal se mostre vantajoso, a coexistência em Saúde de ambos os setores requer uma melhor clarificação no seu relacionamento.

Segundo relatório recente do Tribunal de Contas, as parcerias público-privadas hospitalares geraram uma poupança ao Estado de cerca de 203,3 milhões de euros entre 2014 e 2019, valor estimado pela Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, do Ministério das Finanças. Embora o valor seja bastante inferior ao que o Estado estimara encaixar com o modelo da gestão privada de hospitais públicos (671 milhões de euros), não deixa de ser um resultado financeiramente positivo. Se compararmos, porém, aquele valor com os 500 milhões de euros que anualmente o Serviço Nacional de Saúde deixou de receber desde 2010 das transferências da ADSE, dinheiro que vai inteirinho para os grupos privados da Saúde, em especial para os grandes grupos económicos que gerem as PPP-Saúde, verificamos tratar-se de um valor irrisório.

O relatório refere ainda que “Ao longo do período de execução dos contratos (2009-2019), a produção anualmente contratada pelo Estado a cada um dos parceiros privados ficou, por vezes, aquém da produção realizada, pelo que parte da produção não foi remunerada ou foi remunerada a preços marginais inferiores. Será importante, no futuro, garantir a adequação da produção anual contratada às necessidades de serviços de saúde da população da área de influência de cada hospital”. Esta constatação pode explicar o desinteresse de alguns grupos privados na renovação do modelo de gestão PPP, queixando-se que estão a perder dinheiro. Acrescem ao mal-estar manifestado, os processos litigiosos, alguns ainda em curso, no valor de 60 milhões de euros, pelos habituais desacertos de contas entre o representante do Estado e a entidade gestora privada. Tudo indica, pois, que ou o Estado abre os cordões à bolsa ou os grupos económicos não estão dispostos a manter a pareceria de gestão de hospitais públicos. Cedendo o Estado às pretensões dos grupos económicos, lá se vai a escassa poupança gerada pela gestão privada.

O mesmo relatório diz que “os utentes dos hospitais geridos em PPP estão protegidos por padrões de qualidade mais exigentes do que os aplicados na monitorização dos hospitais de gestão pública”. Pela relevância, este é um ponto particularmente importante.

É dito no relatório que as PPP “estiveram alinhadas com o desempenho médio do seu grupo de referência quanto aos indicadores de qualidade, eficácia e acesso” mas “verificaram-se dificuldades na operacionalização do apuramento de alguns indicadores de desempenho, por inexistência de dados comparáveis nos hospitais de gestão pública”. Recomenda-se assim “a aplicação e a monitorização dos indicadores de desempenho a todos os hospitais do SNS, adequando-os com base na experiência adquirida, bem como de outros mecanismos como a avaliação da satisfação dos utentes”.

Ficámos a saber que os indicadores de desempenho são diferentes nos dois universos de gestão. Assim sendo, como explicar que os padrões de qualidade não sejam os mesmos em todo o universo hospitalar do SNS! Será que por ser público “bacalhau basta”?

Concordando-se com a prerrogativa de o Estado contratualizar com o setor privado sempre que tal se mostre vantajoso, a coexistência em Saúde de ambos os setores requer uma melhor clarificação no seu relacionamento. É conhecido que os grupos económicos gestores das PPP são eles próprios detentores de hospitais construídos, frequentemente, porta com porta com hospitais do SNS. Esta situação, geradora de conflitos de interesses, tem sido ignorada por uma sociedade civil e uma classe política pouco exigentes nesta matéria.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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