O advento do nada

Agora chegados a mais um dia 25 de Abril, quarenta e sete anos depois da revolução que nos devolveu o sonho e a liberdade, enquanto pombos e falcões desavindos do regime vão debicando aqui e ali as sobras do unanimismo, somos tentados pela pavorosa ideia de que nos resta dar graças por sermos livres e assistir amorfos ao advento do nada.

Até à revolução de Abril, o Portugal progressista que se debatia no meio da miséria e do silenciamento tinha uma visão clara pela qual lutar: a liberdade. Quando esta chegou, e após alguns anos conturbados e não isentos de más decisões, Soares emergiu como a grande figura política nacional e estabeleceu um rumo para o futuro: a adesão à comunidade europeia e o desenvolvimento que daí adviria.

Depois da entrada na antiga CEE, seguiram-se os anos de Cavaco, marcados por uma perspectiva demasiado tecnocrata, em que se procurou dotar o país de infra-estruturas e arcaboiço competitivo. Muitos erros também nessa época se cometeram, como hoje se sabe, mas pelo menos seguiram-se os riscos que se traçaram.

Veio Guterres e assumiu-se na política portuguesa um posicionamento mais social e integrador, que procurava esbater desigualdades sem travar os agentes do progresso. Depois dos anos mais anódinos de Barroso e Santana, chegou então Sócrates para lançar a meta da modernização e da tecnologia, descomplicando o país. No início, teve boas ideias e seguiu o caminho delineado, que depois se percebeu que tinha atalhos pessoais demasiado escabrosos e mais umas quantas teimosias igualmente funestas.

Passos herdou os destroços do despautério anterior, viu limitada a sua acção, mas estabeleceu a meta da saída limpa e procurou ir um pouco mais além das obrigações que nos impuseram no que respeita à redução do peso do Estado e à ruptura com um modelo esgotado. Tinha a sua visão, lutou por ela e pensou no país, embora muitos, só por dele discordarem, nunca o tenham entendido, como sabemos.

E assim chegámos a Costa e ao advento do nada. O que somos hoje, o que queremos vir a ser, o que queremos percorrer, e como, para lá chegar? Nada. Nada nos é dito sobre isso. Nada nos é mostrado sobre isso. Nada é feito a pensar nisso. Navegamos à vista e conformamo-nos com números que apenas nos confirmam que as pequenas vitórias caseiras de hoje são a evidência do atraso que já percebemos que se agravará amanhã.

Quem hoje decide as nossas vidas e prepara o futuro das vidas dos nossos filhos é gente despreparada. Com muito raras excepções, são homens e mulheres com fracas competências e incipiente habilidade política, a quem daria jeito o tónico de um sonho colectivo que a todos estimulasse a mais. Não existe uma liderança virtuosa. Sim, existe um líder, um líder forte e reconhecido como tal. Mas um líder sem verdadeira liderança, porque prefere a negociação de pequenas e ilusórias vantagens à mobilização para grandes desafios. Nenhum bom líder se regozija com o apodrecimento da imagem dos seus homens e mulheres de mão, continuamente trucidados na opinião pública pela corrosiva combinação da sua inaptidão com a maquiavélica desprotecção hierárquica.

Na oposição, o panorama é semelhante. Rio, que deveria ser o líder dos descontentes, o congregador de vontades e o promotor de soluções alternativas, desgasta-se, e desgasta-nos, com uma alternância constante entre opiniões sensatas e decisões absurdas. Já ninguém o leva a sério. Está condenado a um lugar de honra no panteão dos que poderiam ter sido o que nunca chegaram a ser. Mais ou menos utópicos e mais ou menos democráticos, o resto são farejadores de migalhas.

Agora chegados a mais um dia 25 de Abril, quarenta e sete anos depois da revolução que nos devolveu o sonho e a liberdade, enquanto pombos e falcões desavindos do regime vão debicando aqui e ali as sobras do unanimismo, somos tentados pela pavorosa ideia de que nos resta dar graças por sermos livres e assistir amorfos ao advento do nada.

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