Um tiro do patriarcado sai pela culatra

É algo estranha esta necessidade humana – ou deverei dizer masculina? – de pôr os nomes em tudo, seja móvel ou imóvel.

O mal de passarmos tanto tempo a obedecer às mesmas regras é que acabamos por deixar de as questionar. Bem sei que já aqui trouxe um tema premente da onomástica portuguesa, mas está na hora de regressar em força ao tema, dada a epidemia que assola os meus estimados contemporâneos que na flor dos trintas decidem dar início a mui belas famílias.

Ora, dizem as convenções que, na consumação do matrimónio, é a mulher quem tem de ostentar orgulhosamente o apelido do marido, e nunca o contrário. Imaginemos, por exemplo, uma dada Inês que decide casar com um determinado Manuel, ela de apelido Sousa, ele de apelido Silva. Mandam as regras então que, na assinatura da papelada, a Inês Sousa passa a ser Inês Silva, e que o nosso Manuel mantém-se imperador do seu imutável Silva. Coisas do patriarcado entranhadas na nossa cultura, bem entendido.

É algo estranha esta necessidade humana – ou deverei dizer masculina? – de pôr os nomes em tudo, seja móvel ou imóvel. O Ford ficou com o nome do seu inventor, a rua ficou com o nome do pintor, o rapa-taças ficou com o nome do ditador e a mulher fica com o nome do tipo que acha que é seu proprietário. O que o tipo armado em proprietário nunca reparou é que, por causa da sua regra tola, acabou por se auto-excluir daquilo que lhe parecia seu por determinação divina.

Imaginemos agora que os nossos Silva decidem ser pais. Chamam Artur ao pequenito, e assim temos uma família Silva como mandam as regras da decência. O rebento terá no seu documento de identificação o nome Artur Sousa Silva. Tal como a mãe, Inês Sousa Silva. O pai, coitado, é um mero Manuel Silva. O patriarcado, com a mania de ser dono da casa inteira, acabou por ficar do lado de fora da porta. Se a família decidir pôr um pequeno letreiro junto à ombreira com os dizeres que assegura que ali moram os Sousa Silva, o nosso Manuel fica sem morada.

E solução para isto, dado o estado das leis? Tenho duas propostas, e nenhuma delas precisa de votos na Assembleia da República. A primeira é esta: se me casar, vou querer ficar com o apelido da noiva, e assim não faltará compromisso na criação de uma nova família. Eu serei Sousa Silva, e ela também. Iguais em tudo, até nos apelidos. A segunda é a mais provável: não casar. Ela tem o seu apelido, eu mantenho o meu. E, mais tarde, havendo uma criança, ela será a soma dos nossos apelidos, o que é de uma poesia eficaz e louvável. E assim contornaremos o tiro do patriarcado que, sem que ninguém aparente ter dado conta, saiu pela culatra.

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