Cristiano já tem uma casa para o tempo em que a sua vida estiver “em transição”

Perdeu o trabalho durante a pandemia e viu-se em risco de ficar sem uma casa. Pediu ajuda à Ares do Pinhal que o colocou no projecto-piloto dos “apartamentos de transição”, onde poderá viver até encontrar um trabalho e se autonomizar.

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Nos novos casos de pessoas que ficam sem tecto é importante que sejam sinalizados o mais rapidamente possível, para impedir que a rua deixe marcas profundas Nuno Ferreira Santos/Arquivo

A vida corria-lhe “normalmente”. Um emprego como ajudante de cozinha numa casa de fados, um quarto junto ao Largo do Rato, em Lisboa. Mas a pandemia chegou e Cristiano J. ficou sem trabalho e em risco de ficar sem tecto. O passado que carrega, em que a droga o deixou preso a uma cama de hospital com uma meningite que obrigou médicos a fazerem-lhe “furos na cabeça”, acabou por ser decisivo na solução que hoje encontrou. Depois dessa batalha ganha — que o livrou dos consumos há mais de cinco anos —, mas perante outro momento de aflição, entrou em contacto com a associação Ares do Pinhal com a qual já trabalhara a “aprender a ver a vida sem drogas”. 

Acabaram por incluí-lo no projecto-piloto dos “apartamentos de transição” — casas onde pessoas que estão há pouco tempo na rua, ou na iminência de lá ir parar, são acolhidas enquanto procuraram emprego para poderem depois retomar as suas vidas. “Falei com eles e trouxeram-me para aqui”, diz Cristiano, no quarto que hoje partilha num dos quatro apartamentos com que este projecto dá agora os primeiros passos. 

Para chegarem a esta resposta, as pessoas têm de estar referenciadas pela rede social existente na cidade, passando depois pela “triagem” das equipas da Ares do Pinhal, explica Paulo Lopes, responsável desta associação, que intervém junto de pessoas em situação de exclusão social.

“Quando vêm para aqui, as pessoas têm de ter consciência de que têm de ser inseridos no mercado de trabalho”, explica o responsável. A ideia é que permaneçam neste apartamento por cerca de seis meses, passando depois para outras casas onde vão ganhando mais autonomia.

“Voltar a ser eu mesmo”

O projecto arrancou em Fevereiro. Para já, estão três pessoas integradas, mas há mais de 40 sinalizações feitas já pela rede. As casas pertencem ao município e localizam-se nas zonas do Beato, Estrela, Alcântara e Ajuda, perfeitamente inseridas na malha urbana. É gerido pela Ares do Pinhal e financiado pela Câmara de Lisboa, no âmbito do Plano Municipal para a pessoa em situação de sem-abrigo. 

Neste T3 na zona das Olaias, vivem actualmente três pessoas — mas há capacidade para receber mais duas — que foram “fustigadas” pela pandemia, ficando sem emprego e sem rendimentos. Antes que caíssem na rua, conseguiram integrar esta resposta, onde precisam apenas de um empurrão para retomarem as suas vidas. 

“A pessoa deixará de ser dependente dos serviços públicos e passa a ser completamente autónoma. Isto é um projecto para pessoas valentes, para pessoas que têm ainda muito para dar”, diz Elsa Belo, directora técnica da Ares do Pinhal. 

É o caso de Cristiano J. “Ele estava integrado no mercado de trabalho e foi a pandemia que o trouxe para uma situação de extrema vulnerabilidade”, observa a técnica. Depois, há outros casos que não estão relacionados com a pandemia. “Foi a vida”, resume Elsa Belo. 

Cristiano chegou há uma semana. Partilha o quarto com mais uma pessoa e até ao momento tem corrido tudo bem. “Está impecável”, resume. 

A cozinha é agora o seu território e foi esse o acordo que fez com os colegas: ele cozinha e os colegas, que estão a trabalhar ou em formações durante a semana, limpam a casa nas folgas do fim-de-semana.

De acordo com a última contagem conhecida, feita nos meses de Outubro e Novembro pelo município, há 356 pessoas a pernoitar nas ruas da capital. Dessas, 140 tinham caído na situação de sem-abrigo no último ano. Nos novos casos de pessoas que ficam sem tecto é importante que sejam sinalizados o mais rapidamente possível, porque a rua pode deixar marcas muito profundas, por vezes difíceis de conseguir apagar, notam os técnicos. 

“Às vezes o mercado de trabalho não está preparado para receber pessoas mais vulneráveis. Mas se a pessoa tiver ainda algumas coisas conservadas consegue-se ainda [recuperá-las]. Estamos confiantes de que isto vai correr bem”, diz Elsa Belo. 

Enquanto vivem nos apartamentos de transição, estas pessoas são sempre acompanhadas pelas equipas técnicas da Ares do Pinhal, que vão trabalhando com eles a sua autonomização e reintegração na sociedade, seja no acesso a cuidados de saúde, a direitos de cidadania, ou na procura de emprego. As despesas com água, luz, gás e alimentação são asseguradas pela Câmara de Lisboa. 

Agora que o Verão se aproxima, Cristiano J. vai ganhando mais esperança em conseguir encontrar um trabalho, se possível, na área da restauração porque “há sempre o que fazer”. “Sou uma pessoa muito nervosa e gosto de estar ocupado”, ri-se. Depois do trabalho, a prioridade será arranjar uma casa ou um quarto que possa pagar. “Até voltar a ser eu mesmo.”

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