Almada: a cidade do futuro que é uma promessa do passado

Sabendo-se que a acessibilidade pedonal é a base de um sistema de transportes eficiente e que a bicicleta e o transporte público são os seus outros vectores fundamentais, antevê-se uma cidade futurista – mas de um futuro sonhado há largas décadas e que hoje é uma promessa de passado.

Almada acaba de apresentar a sua “cidade da inovação”: 100 hectares de área a construir na encosta acima de Porto Brandão, onde se prevêem universidades, emprego, habitação e amplos espaços verdes. Esta descrição promissora esbarra, contudo, num modelo de cidade obsoleto, nascido há quase 100 anos e que se reconhece como falhado há largas décadas.

A sua origem data de 1924, altura em que Le Corbusier apresentou ao mundo a Cidade Radiante, inspirada nas utopias de Howard e no desurbanismo soviético. Em oposição ao urbanismo tradicional, o arquitecto francês visava aplicar a lógica industrial à construção urbana, propondo uma organização radical da cidade e a segregação das suas funções elementares: habitação, trabalho, recreio, circulação. Ao centro, torres sistematicamente repetidas contribuíam para a formação de um padrão geométrico perfeito. A densidade em altura, tornada possível pelo advento do betão armado, garantia a libertação de 95% do solo urbano, numa cidade que se deveria tornar numa “máquina de habitar”. E que confiava no automóvel para superar o distanciamento que propunha e que o próprio meio de transporte exigia, para sua fluida circulação e estacionamento. Em 1933, esta proposta serviria de base à Carta de Atenas: manifesto escrito e assinado por um grupo de arquitectos que, na sequência de um Congresso Internacional de Arquitectura Moderna decorrido num barco ao largo da capital grega, se comprometeu com uma nova forma de fazer cidade.

Primeiro mais marcantes nos EUA, inspirando a transformação profunda de Nova Iorque levada a cabo por Robert Moses e dando início à dispersão urbana que hoje condena o território americano, as ideias modernistas acabariam por ser difundidas e experimentadas em larga escala na Europa, no rescaldo da 2.ª Guerra Mundial. A repetição sistemática do modelo assentava como uma luva na urgência da reconstrução urbana e numa nova ordem social, que exigia maior equidade e habitação digna para as massas. Hoje, esta mudança morfológica, que serviu de base à legislação urbanística e edificatória nos quatro cantos do mundo, é reconhecida como a maior ruptura alguma vez ocorrida na forma de fazer cidade.

Datam dos anos 60 as primeiras críticas consistentes à cidade moderna, feitas em contracorrente por figuras como Jane Jacobs, autora de Morte e vida de grandes cidades, ou Jan Gehl, que se dedicou a estudar A vida entre edifícios. Ambos chamaram a atenção para o desmembrar da vida urbana, em consequência da segregação de usos e dos espaços livres desabridos – resultado de projectos imaginados a partir de cima e sem sensibilidade ao espaço percepcionado pelo peão. Com o sentido de humor que o caracteriza, Gehl afirma que “se tivesse sido pedido aos modernistas para destruírem a cidade, estes não conseguiriam ter feito melhor trabalho”.

Hoje, as externalidades da cidade moderna e das malhas urbanas construídas nas últimas décadas – e que, de forma mais ou menos desvirtuada, assentam nos seus princípios – apresentam-se amplamente documentadas, dando corpo a incontáveis estudos científicos. Estes quantificam e objectivam questões como: 1) o tédio, suscitado pela ausência de diversidade; 2) o desconforto, resultante de espaços livres excessivos e incontidos; 3) a fragmentação social, consequente da fragmentação urbana; 4) os custos e impactos consequentes de uma forma urbana pouco propícia a andar a pé, de bicicleta e de transportes públicos. Estes estudos mais não fazem do que justificar o desentusiasmo que nos suscita a generalidade dos tecidos urbanos recentes, em acentuado contraste com a valorização dos centros históricos a que todos vimos assistindo.

Tendo-os por base, grande parte da literatura urbana actual procura apontar caminhos para que arquitectos e urbanistas voltem a ser capazes de criar cidades contemporâneas com escala humana, densas, diversas, inclusivas e sustentáveis, base de uma sociedade mais coesa e saudável. Em 1998, uma segunda Carta de Atenas foi também escrita, desdizendo os conselhos da primeira.

Não obstante, o modelo modernista continua impregnado na legislação, nos hábitos e nos processos que diariamente ditam a construção das cidades que habitamos, determinando a nossa qualidade de vida. Disso é exemplo o PDM do Porto, agora em discussão pública, onde se impõe a construção em torres isoladas em muitas das novas áreas urbanas; exigências de acesso e estacionamento que comprometem melhores soluções urbanas; ou a “cidade da inovação” agora apresentada por Almada, em jeito de Silicon Valley à portuguesa.

Apesar dos ingredientes de excelência de que a câmara da margem Sul dispõe – nomeadamente um enquadramento natural privilegiado, a proximidade a Lisboa e um programa promissor (onde se inclui a extensão da Universidade NOVA, a renovação do campus da FCT e a antevisão de emprego qualificado e de habitação) –, o projecto comprova que bons ingredientes não chegam para fazer um bom bolo. Quando ovos e farinha não se misturam, o resultado continua a ser uma soma de partes. E sem escala humana falta, também, fermento à cidade.

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Se nos lançarmos para a planta de zonamento, antevemos as bolhas uniformes que se propõem, de acordo com as respectivas funções: zonas residenciais, empresas, turismo e, vá, algumas zonas de uso misto. Faz, claro, sentido haver maior concentração de emprego ao longo dos eixos rodoviários principais, por regra mais ruidosos, mas isso é bem diferente da criação de bolsas de usos monofuncionais, que fazem da cidade uma manta de retalhos, condenando a desejável proximidade e mistura social. Além disso, numa altura em que relevantes alterações na forma de trabalhar põem em causa a demanda de escritórios, a capacidade de adaptação dos edifícios evidencia-se como sinónimo de resiliência. Também aqui, não é o mais arrojado que sobrevive, mas o que melhor se adapta.

Na referida planta, onde os acessos rodoviários se encontram explícitos, o transporte público encontra-se razoavelmente representado mas a inclusão de um pequeno troço de ciclovia não augura nada de bom. Na ausência desta indicação consolar-nos-ia a expectativa de que toda a malha urbana fosse, de algum modo, ciclável, como deveria – não só porque a bicicleta é o modo mais eficiente em distâncias urbanas, mas também por ser um complemento ao transporte público de massas, ampliando o seu raio de captação. Nem as imagens 3D que, de relance, podem arregalar os olhos, conseguem vender a ideia de que aquela é uma cidade onde as crianças vão sozinhas para a escola, gozando de ruas seguras e de vigilância natural. O que importa às famílias, mas não só, já que estas são um importante indicador da qualidade do espaço público: cidades boas para as crianças são melhores para todos. De facto, é pouco provável que os peões representados no modelo venham realmente a existir, face à segregação de usos, aos percursos desacompanhados e ao enfado que sempre suscitam edifícios repetidos e sem frente urbana. Sabendo-se que a acessibilidade pedonal é a base de um sistema de transportes eficiente e que a bicicleta e o transporte público são os seus outros vectores fundamentais, antevê-se uma cidade futurista – mas de um futuro sonhado há largas décadas e que hoje é uma promessa de passado. Edifícios eventualmente sustentáveis não compensam uma mobilidade que dificilmente o será, nem é plausível que o verde abundante e o extenso relvado das imagens venha alguma vez a existir no clima aprazível que temos.

Finalmente, a maquete evidencia um projecto feito de costas para as pessoas que ali moram e que assenta numa ruptura com a envolvente, em termos de escala e morfologia. Constituída pela soma de conjuntos edificados uniformes, a cidade prometida pouco difere dos tecidos urbanos mais recentes de Lisboa e de tantos outros que constituem as periferias do nosso país. Claro que a arquitectura promete maior arrojo. Mas como há muito sabemos, e ao contrário do que os modernistas acreditavam, bons edifícios não garantem uma boa cidade.

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