2020, o ano da reconquista do espaço público urbano

Vivemos tempos de mudança de paradigma: da “rua da estrada” para a “rua das pessoas”. A mudança não vai ser nem fácil, nem rápida, nem sem conflitos. Se a evidência empírica científica não tem sido (ainda) suficiente para mudar o paradigma da mobilidade automóvel, esperemos que a covid-19 seja.

A afirmação do automóvel ao longo do século XX alterou a organização, bem como a percepção, do espaço público urbano e dos seus usos, guardando para si o papel de ator principal. A crescente dominância do automóvel levou também a que a rua fosse perdendo a sua função de socialização, tornando-se cada vez mais num lugar cuja função principal é servir o fluxo de tráfego motorizado. O paradigma da “rua da estrada” que caracteriza as nossas áreas urbanas é uma herança de várias décadas de afirmação de uma cultura rodoviária promovida por gerações de arquitetos urbanistas, engenheiros rodoviários e decisores políticos, que favoreceu as estradas e o automóvel como soluções para o crescimento urbano, em detrimento do transporte público, o andar a pé e de bicicleta. Uma herança que nada tem de natural nem de inevitável. Para se compreender a afirmação do sistema sociotécnico da automobilidade em Portugal durante o século XX, recomendo fortemente a leitura dos trabalhos da investigadora Maria Luísa Sousa​, nomeadamente sobre a forma como o “lobby” automóvel influenciou a reformulação da rua e das estradas do ponto de vista do automobilista tanto através da regulação da circulação como do planeamento e construção da infraestrutura rodoviária.

A maioria do espaço da via pública nas cidades está alocado ao automóvel sob a forma de estradas e estacionamento, ficando os restos deste espaço para os outros utilizadores da via pública, nomeadamente os peões, que são nada menos que a maioria. A supremacia do automóvel exigiu como condição necessária de auto-reprodução um exuberante investimento em infraestrutura rodoviária, que por sua vez contribuiu para o acentuar de um modelo de ordenamento do território altamente desequilibrado e ineficiente, caracterizado por uma urbanização dispersa e suburbanização. No caso de Lisboa e do Porto, o investigador Miguel Padeiro estimou que as duas áreas metropolitanas estão entre os aglomerados urbanos europeus mais bem dotados de infraestrutura rodoviária – com um possível sobredimensionamento de 35-42% –, o que agrava a dependência do carro à escala metropolitana​.

O excesso de oferta de espaço público para o automóvel – em estradas e estacionamento – é agravado pela existência de um sistema de incentivos financeiros à posse e uso do mesmo, entre as quais o preço reduzido, quando não mesmo gratuito, do estacionamento na via pública. A evidência científica indica que o preço do estacionamento é um dos fatores que mais influencia a posse e uso do carro (sendo por isso o seu aumento uma das medidas de mobilidade menos populares e mais caras em votos para os decisores políticos). A este respeito, os dados do Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, realizado pelo INE em 2017, ilustram bem a forte subsidiação da via pública para estacionamento de automóveis privados. No caso da Área Metropolitana de Lisboa (AML), mais de 60% dos veículos ligeiros de passageiros têm estacionamento gratuito na rua na área de residência, sendo o valor de 41% para o concelho de Lisboa. É importante notar que estes valores não incluem os dísticos de residente, cujo preço é também fortemente subsidiado (e.g. em Lisboa, o primeiro veículo paga apenas uma taxa administrativa de 12 euros/ano). Se considerarmos o estacionamento no local de trabalho, verificamos mais uma vez um forte incentivo ao uso do carro: na AML, quase 90% da população empregada que se desloca de carro para o local de trabalho tem estacionamento gratuito no espaço público (47%) ou no local de trabalho (41%). Os valores para Lisboa relativamente ao estacionamento gratuito no local de trabalho são 27% em espaço público e 50% no local de trabalho.

Não é, portanto, surpresa que o automóvel seja o principal meio de transporte utilizado, representando 59% das deslocações na AML. Embora o peso do carro seja menor em Lisboa cidade, com 47% de todas as deslocações realizadas, estamos ainda assim perante um valor muito acima do que seria desejável, especialmente se considerarmos que 68% das deslocações são inferiores a 5 km, podendo uma boa parte delas ser transferida para meios de transporte mais eficientes como seja a bicicleta. Reconhecer que a bicicleta é uma opção viável em relação ao carro porque é mais eficiente em termos de tempo de viagem, de custo e de utilização do espaço público é importante porque evita que o discurso de promoção da mobilidade ciclável se foque “apenas” na questão da compensação das externalidades negativas do carro. A mobilidade ciclável é desejável, não só pelos seus benefícios ambientais e de saúde, mas também porque é o meio de transporte mais eficiente para uma grande parte das deslocações urbanas. Como tal, deve ser considerada pelos planeadores urbanos e de transportes como uma alternativa necessária, acabando com o enviesamento que existiu durante décadas nas metodologias de apoio à decisão de investimento utilizadas por estes profissionais.

A pandemia da covid-19 provocou fortes mudanças nos padrões de mobilidade urbana. Durante a fase inicial de confinamento e teletrabalho generalizados, a mobilidade foi fortemente reduzida, com implicações muito visíveis nas emissões de poluentes. A atual fase de pós-confinamento com a necessidade de distanciamento social impõe fortes limitações ao uso do transporte público, enquanto ao mesmo tempo os níveis de uso do carro aumentam significativamente. As medidas de distanciamento social e a percepção de um maior risco de contágio contribuiem para diminuir a atratividade do transporte público, o que poderá levar ao aumento do uso do carro. O desafio com que as autoridades locais e nacionais se deparam é por isso duplo. Por um lado, é preciso evitar que as pessoas que se afastam dos transportes públicos usem o carro, optando antes por andar a pé e de bicicleta, o que implica dar mais espaço a estes utilizadores. Por outro lado, pretende-se que a reformulação do espaço público seja também uma forma de promover a transferência de viagens do carro para modos mais eficientes e mais sustentáveis.

A Câmara Municipal de Lisboa (CML) tem vindo a implementar várias medidas de transformação do espaço público através dos programas “A Rua é Sua”, “Lisboa Ciclável” e a Zona de Emissões Reduzidas (ZER) Avenidas Baixa Chiado, com vista ao aumento do espaço pedonal, o aumento da rede ciclável, e a redução do tráfego automóvel. Estas medidas são prova de que vivemos tempos de mudança de paradigma: da “rua da estrada” para a “rua das pessoas”. A mudança não vai ser nem fácil, nem rápida, nem sem conflitos. Perdemos tempo demais a tomar decisões erradas, mesmo quando já se sabia melhor. Se a evidência empírica científica não tem sido (ainda) suficiente para mudar o paradigma da mobilidade automóvel, esperemos que a covid-19 seja.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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