2021, um ano especial para o caminho de ferro
2021 será certamente um ano especial para a União Internacional dos Caminhos de Ferro, mas também para o caminho de ferro Europeu, querendo eu acreditar que as promessas de investimento, tão frequentes e de âmbito global, vão ser uma realidade e não se reduzirão a meras palavras, para bem da comunidade, do ambiente e da qualidade de vida das novas gerações.
O ano de 2021 será, assim o esperamos, o ano do início da derrota do vírus que nos atormenta, ano de Presidência Portuguesa da UE, o Ano Europeu do Caminho de Ferro (CF) e, também, o ano em que se inicia a comemoração dos 100 anos da fundação da União Internacional dos Caminhos de Ferro (UIC). E é na senda desta última comemoração que me proponho elaborar um singelo testemunho sobre o que é a UIC, algumas notas históricas e breves referências ao futuro.
O que é a UIC
A UIC é uma associação que integra, fundamentalmente, operadores de transporte e gestores de infraestruturas ferroviárias, mas também universidades e estruturas de inovação, desenvolvendo uma estreita colaboração com várias entidades da sociedade civil, que veem no CF um parceiro relevante para a promoção dos seus objetivos de intervenção económica, social e ambiental.
A UIC integra atualmente cerca de 200 empresas ferroviárias a nível mundial, que operam em linhas com cerca de um milhão de km de extensão, espalhadas por cerca de 100 países, bem como 40 universidades e 80 parceiros institucionais e comercias.
A UIC tem subjacente à sua atuação, essencialmente técnica, a trilogia de valores – Unidade, Universalidade e Solidariedade – que a colocam em posição única na promoção e desenvolvimento do CF, numa abordagem multilateral integradora, baseada na cooperação e no conhecimento técnico dos seus membros.
Da sua intensa atividade em grupos de trabalho, plataformas e fóruns são produzidas fichas técnicas, recomendações técnicas, manuais de boas práticas, para além de estudos específicos. Muitas centenas de reuniões de trabalho, conferências e workshops são anualmente organizadas, numa intensa atividade que envolve milhares de protagonistas.
As áreas de atividade que integram a sua estrutura organizativa dividem-se segundo grandes áreas de interesse como os passageiros e a alta velocidade, as mercadorias, as comunicações, o digital, a via férrea, a energia, a segurança, o material circulante, a formação e os recursos humanos.
É, pois, um espaço partilhado de investigação e de inovação, que não esquece as questões operacionais do dia a dia das empresas, que responde às necessidades dos seus membros e aos desafios que, em permanência, a sociedade coloca ao CF.
Algumas notas históricas gerais
A ideia de fundar a UIC surge na sequência do fim da Primeira Guerra Mundial e da nova dinâmica de cooperação internacional vigente, que justifica a criação de uma organização que integre empresas ferroviárias de todo o mundo, onde se desenvolvam soluções padronizadas para a construção e operação dos sistemas ferroviários a nível global, ou seja, a interoperabilidade.
A primeira iniciativa fundadora ocorre na conferência internacional de Portoroz, na altura Itália e hoje Eslovénia, em novembro de 1921, iniciativa confirmada na conferência internacional de Génova, em maio de 1922. A Assembleia constitutiva final efetiva-se em 17 de outubro de 1922, em Paris.
Desde aquela data, a UIC tem-se concentrado na concretização da visão dos seus fundadores, ou seja, na promoção de um caminho de ferro universal, interoperável, consistente e capaz de se transformar na coluna vertebral do sistema de transportes global.
Têm sido 100 anos de forte dedicação à causa da ferrovia na sua vertente técnica sistémica, que muito valoriza a inovação, trabalhando sempre com o suporte dos seus membros.
Algumas notas históricas sobre o envolvimento português
Logo na primeira reunião onde a criação da UIC se discutiu, Portugal esteve presente, tendo sido um dos Países fundadores da associação, de entre os 51 membros de 29 países que integraram o seu núcleo inicial. O Boletim da CP n.º 21, de março de 1931, descreve o objetivo da associação e os trabalhos que aí se desenvolviam, referindo a dado passo sobre esta matéria que “... A União distribui o estudo das diferentes questões ferroviárias por 5 comissões técnicas: 1.ª— Tráfego de passageiros; 2.ª — Mercadorias; 3.ª — Liquidações reciprocas e câmbios; 4.ª — Troca e uso recíproco de material circulante; 5ª - Questões técnicas. Nestas Comissões entram os representantes das Administrações membros, nomeados pela Assembleia Geral por períodos de cinco anos. A Companhia toma parte, nesta data, na 1.ª e na 3.ª Comissões.”
Uma curiosidade pouco conhecida prende-se com o facto de a grande sala de reuniões da sede da UIC, em Paris, estar forrada a cortiça oferecida por Portugal, que dá a esta instalação excelentes características sonoras e de conforto geral. A referência a este donativo e a todos os outros efetuados pela generalidade dos membros da associação pode ser lida no Boletim da CP n.º 410, de agosto de 1963, onde consta esta referência: “A construção foi financiada por reservas da tesouraria do Secretariado Geral da U.I.C. e por meio de um empréstimo amortizável em 25 anos, feito por onze Administrações de Caminhos de Ferro. Além disso, a maior parte das Administrações ferroviárias contribuiu com uma dádiva de materiais de grande valor e de alta qualidade artística, para o arranjo interior do edifício, que foi inaugurado em 29 de Maio último.”
Uma outra curiosidade é referida no Boletim da CP n.º 522, de dezembro de 1972, onde se pode ler: “Conforme a Imprensa oportunamente divulgou, a... [UIC], para comemorar o cinquentenário da sua fundação, promoveu, entre outras iniciativas de carácter cultural, um concurso de desenho de temática ferroviária, destinado aos alunos de qualquer grau de ensino, dos 10 aos 16 anos de idade, pertencentes aos países membros daquele organismo internacional — entre os quais Portugal. Assim, a CP, tal como a generalidade das Administrações ferroviárias associadas àquele organismo internacional, instituiu, por seu turno, prémios nacionais, tendo, na ocasião, o respectivo júri classificado em primeiro lugar o concorrente Carlos Manuel Baptista Fiolhais, de 16 anos, aluno, aliás, distinto, que frequenta o 7.° ano do Liceu Normal D. João III, de Coimbra.”
Até 1974, e não obstante algum isolacionismo decorrente de políticas nacionais muito próprias, o corpo técnico ferroviário não deixou de se envolver neste fórum internacional nas discussões dos temas mais relevantes para a atividade, fosse ela relacionada com a infraestrutura, o material circulante ou a cooperação em termos de serviços internacionais. Com o advento de políticas mais alinhadas com uma Europa em crescente afirmação e após a adesão do País à então CEE, cresce o envolvimento dos quadros nacionais na atividade internacional. Reflexo desta nova postura terá sido a realização em Lisboa, em 1993, do Congresso Ferroviário Mundial, organização conjunta da UIC, AICCF e do Governo Português, que, como referido no Boletim Informativo da CP de 20 de fevereiro de 1993, foi considerada uma “oportunidade para o nosso caminho de ferro se atualizar".
Deste maior envolvimento, resultou, também, a crescente assunção pelos quadros ferroviários nacionais de responsabilidades em enquadramento técnico, ou em órgãos estatutários da associação, o que reflete a importância que temos dado ao trabalho desenvolvido e ao respetivo retorno.
E o futuro?
Citando um dos mais marcantes diretores gerais da UIC, “o caminho de ferro será o modo de transporte do século XXI se resistir ao século XX” e tudo indica que terá razão, pelo menos se atendermos à realidade e às tendências de evolução conhecidas.
E, falando de tendências e de perspetivas de desenvolvimento futuro, o caminho da UIC estará intimamente ligado ao desenvolvimento técnico do CF e, nomeadamente, aos desafios da automação e automatização, das novas comunicações móveis ferroviárias, da internet de todas as coisas e do 5G, das infraestruturas inteligentes e dos comboios inteligentes, dos sistemas e equipamentos resilientes, da transformação das estações ferroviárias e das infraestruturas logísticas em áreas inteligentes de transferência multimodal, do incremento da eficiência energética e da utilização de energias alternativas, como o hidrogénio, ou da nova ergonomia dos comboios. Todas estas áreas de trabalho prestarão, seguramente, uma especial atenção às condições de segurança, não só operacional, como de pessoas e bens, mas atenderão de uma forma muito particular aos novos desafios de cibersegurança, que os sistemas digitais e a telemática colocam.
2021 será certamente um ano especial para a UIC, mas também para o caminho de ferro Europeu, querendo eu acreditar que as promessas de investimento, tão frequentes e de âmbito global, vão ser uma realidade e não se reduzirão a meras palavras, para bem da comunidade, do ambiente e da qualidade de vida das novas gerações.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico