Até o Spotify passou a “falar” português europeu

O cinema é um exemplo de que, mesmo com reformas ortográficas, a distinção entre o uso do idioma em Portugal e no Brasil se mantém e manterá.

Nem de propósito. No mesmo dia em que era publicada a minha crónica anterior, dando conta da edição em Portugal de uma colecção do Snoopy em português do Brasil, sem qualquer aviso a explicar tal opção, chegava a notícia de que a plataforma de distribuição de música Spotify ia ter 36 novos idiomas, incluindo “oficialmente o Português Europeu”. Note-se que entre os 25 antes disponíveis o Spotify incluía o “Português do Brasil (Brazilian Portuguese)” mas também duas variantes do espanhol (“Spanish” e “International Spanish”) e duas do francês (“French” e “Canadian French”), acrescentando agora ao chinês nova variante, o “Simplified Chinese”. E assim somam quatro línguas com duas variantes cada, incluindo o “Portuguese for Portugal”!

Nada disto é estranho. Estranho é que se continue a insistir numa uniformização ortográfica do português, ignorando que, mesmo que tal fosse possível (e não é), de nada adiantaria face ao resto, ou seja, às diferenças naturais que cada cultura imprimiu ao uso, oral e escrito, do idioma comum. É curioso, por exemplo, que na citada edição do Snoopy (com as tiras traduzidas em português do Brasil), os textos introdutórios tenham um lote de palavras que, mesmo aplicando o malfadado Acordo Ortográfico de 1990, continuam diferentes cá e lá. Comecemos pelas que passaram a ser iguais na escrita: diretor, ótimo ou trajetória. E agora as outras: fato, contato (facto e contacto em Portugal), tênis, bebê, polêmica, platônica, fenômeno, icônicos (aqui diferentes na acentuação), dezesseis (dezasseis, na grafia portuguesa) ou características, aspecto, perspectiva e acepção, que eram iguais nos dois países mas que o AO90 obrigou Portugal a alterar para caraterísticas, aspeto, perspetiva e aceção. Que belo serviço à unidade do idioma!

O cinema é outro exemplo de que, mesmo com reformas ortográficas, a distinção entre o uso do idioma em Portugal e no Brasil se mantém e manterá, saudavelmente, já que só assim ganham identidade em cada um dos países as dobragens ou legendagens de filmes estrangeiros. Já aqui se falou disto, no passado, com vários exemplos. Mas podemos fazer um outro exercício, usando dois vídeos de filmes com uma característica rara: dobragem (dublagem, no Brasil) em português brasileiro e legendas no português europeu pré-AO90.

Um deles é o DVD de 6 Dias, 7 Noites, de Ivan Reitman, comédia com Harrison Ford e Anna Heche. Ainda no genérico, na cena do jantar entre Frank e Robin, ouve-se este diálogo entre ambos: Ela: Será que dá pra dizer o que está tramando? Ele: É somente parte da surpresa. Ela: Não vai terminar tudo, vai? Ele: Nós não vamos terminar. Ela: Tá legal. Ele: Sabe o que é que eu quero? O que eu quero mesmo é incrementar o romance. E nas legendas lemos isto: Ela: O que andas a tramar? Ele: Faz tudo parte da surpresa. Ela: Queres acabar comigo? Ele: Nós não estamos a acabar. Pelo contrário, eu pretendo aumentar o romantismo das nossas vidas.”

Já com a edição francesa em UHD-4K de Dracula, de Francis Ford Coppola, podemos fazer idêntico exercício. A dada altura, Renfield (Tom Waits) diz, na dobragem: Eu fiz tudo o que me pediu, Mestre. Mestre, eu estou aqui! Eu idolatro o Senhor! E nas legendas lemos: Fiz tudo o que pediste, Amo. Amo, estou aqui! Tenho-te venerado! Quando Jonathan (Keanu Reeves) e Mina (Winona Ryder) se encontram no jardim, trocam estas palavras: Ela: Jonathan, eu amo você. Ele: Eu amo você, Mina. E nas legendas: Ela: Jonathan, amo-te. Ele: E eu a ti, Mina.

O mesmo sentido, a mesma língua, mas dois mundos bem distintos nas expressões da fala. Aceitar isto é essencial para que nos entendamos nas nossas diferenças. É o que fazem, para dar dois bons exemplos, editoras como a Tinta da China ou a Companhia das Letras. A primeira edita os livros de Ruy Castro sem mexer no original brasileiro, mas escrevendo as badanas em português europeu pré-AO90; o mesmo fazem as edições portuguesas da brasileira Companhia das Letras, mantendo intacta a escrita de Chico Buarque, cuja obra tem editado em Portugal. E há ainda outro exemplo, digno de nota: no excelente Livros Que Tomam Partido (1968-1980), do investigador brasileiro Flamarion Maués, o editor português (Parsifal) não tocou na escrita do autor, em português do Brasil, mas manteve o português europeu pré-AO90 nos excertos (citados) de obras editadas em Portugal e nas “entrevistas e depoimentos prestados por fontes portuguesas.” Se todos agissem com tais escrúpulos, o “acordês” seria já escrita morta.

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