Jornal O Negro reeditado 110 anos depois: “pelo direito à memória”

Órgão de estudantes negros foi publicado a 9 de Março de 1911. Nele fazia-se uma crítica ao colonialismo e dava-se conta da luta anti-racista a nível internacional. “Que ridícula tutela esta que nos impuseram e à sombra da qual temos sofrido toda a sorte de infâmias e opressões”, comentam sobre o “abandono” da metrópole em relação à escolarização.

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A primeira página do jornal "O Negro" de 9 de Março de 1911, e a sua reedição actual

Foi o primeiro de onze jornais dirigidos por afrodescendentes, publicados em Portugal entre 1911 e 1933. Chamava-se O Negro, teve três números e foi lançado meses depois da implantação da República. A 9 de Março de 1911 a edição inaugural apelava: “Reflictamos…A nossa escravidão é secular e em virtude d’ella temos soffrido todos os vexames e tirannias e em virtude d’ella temos sido o alvo aonde a inveja, o crime e o insulto teem crivado impunemente as suas settas venenosas.” 

Esta terça-feira, é lançada a reedição deste órgão, numa edição da Falas Afrikanas, projecto editorial centrado em obras de autores africanos, e uma iniciativa da socióloga Cristina Roldão, do historiador José Pereira e do antropólogo Pedro Varela (estes dois investigadores estudaram as origens do movimento negro em Portugal e Cristina Roldão tem investigado a história das mulheres negras e da presença negra em Setúbal, bem como o sistema educativo). A reedição vem acompanhada de um texto de contextualização dos autores, e a versão impressa será vendida nas livrarias Letra Livre (Lisboa) e Tchatuvelah (online) e na loja Bazofo & Dentu Zona (Cova da Moura). Está disponível gratuitamente em formato digital (aqui).

O Negro durou três números e pouco se sabe sobre as organizações que o usaram como ferramenta, a Associação dos Estudantes Negros e a Liga Académica Internacional dos Negros, assim como sobre as principais figuras que o lideraram (Ayres de Menezes, Artur Monteiro de Castro, Alberto José da Costa, Pedro Gamboa e J.Cunha Lisboa). A redacção era na Rua Maria, 47, perto da Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Sabe-se, porém, que O Negro se distinguiu pela “forte radicalidade das suas posições, influenciada pelos ideais republicanos, pelos debates em torno do socialismo, pelo anticlericalismo e, principalmente, pela referência constante à luta negra que despontava em alguns lugares do mundo”, afirma a organização. Foram três números onde os estudantes exigiam “o fim da desigualdade racial”, reivindicavam “uma África que fosse ‘propriedade social dos africanos’ e não retalhada pelas nações e pessoas que a conquistaram, roubaram e escravizaram”.

Nas suas páginas amareladas, o jornal denuncia os atropelos do colonialismo português e as leis de excepção que regulam as então denominadas províncias ultramarinas. Afirma que aquela é uma publicação que não distingue raças ou classes sociais e que combate todas as “iniquidades, opressões e tiranias”.

Fraco investimento com escolas 

Logo na primeira página do número inaugural, aparecem as críticas ao “abandono” feito pelo poder colonial à escolarização nas “províncias ultramarinas” algo que espelha “um dos motivos da decadência e miséria da sua população”. Sobre Moçambique denunciam a ausência de liceus. “Há apenas algumas escolas de instrução primária, muitas das quais não funcionam regularmente, pecando todas por falta de mobiliário suficiente (...) Que ridícula tutela esta que nos impuseram e à sombra da qual temos sofrido toda a sorte de infâmias e opressões”. 

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Ayres de Menezes (no centro) foi uma das figuras que lideraram o jornal. Na fotografia com Lázaro da Graça e Januário da Graça. Lisboa, 1918 Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Arquivo Mário Pinto de Andrade

Já no segundo número, a 21 de Maio de 1911, a manchete titulava: “A liberdade é o alpha e o omega dos tempos modernos. Nada de grilhões, ainda mesmo que elles sejam de ouro.” O arranque podia ter sido escrito hoje: “É impossível negar a existência para os filhos de África de uma questão social baseada no facto secular da sua violenta exclusão da posse e usufruto dos bens da terra que lhes foi berço.”

E mais à frente: “Em nossa própria casa somos afinal os párias e felizes os que nos expoliam, na administração das nossas pessoas e bens. Nela não temos liberdades, não temos direitos, nem garantias. A legislação que os rege só atende às conveniências políticas e aos privilégios económicos das nações que nos roubaram a terra natal (…)”.

Este número citava Thomas d'Aquino Almeida Garret numa conferência em que “demonstrou ao contrário do que tantas vezes se tem afirmado, que as colónias portuguesas pagaram integralmente em 17 anos as despesas que em 40 com elas fez a metrópole tendo ainda a seu favor um saldo de centenas de contos de réis”. 

Depreendendo-se que O Negro causou impacto e polémica, o terceiro número arrancava com uma resposta aos impropérios e insultos de que se dizem ter sido alvos. “O nosso pensamento é de amor e de justiça”, afirmam. 

Um dos objectivos desta reedição, segundo os organizadores, foi justamente trazer o contributo dos activistas anti-racistas daquele período. “Trazer para o presente este jornal é ferramenta imprescindível para questionar o silenciamento da multissecular presença negra em solo português”, afirmam. Mais do que comemorar uma efeméride, este é um “exercício do direito à memória enquanto instrumento de combate anti-racista na actualidade”, continuam.

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Primeira página da edição de 21 de Maio de 1911

Para o historiador José Pereira, da leitura destes números há quatro eixos que saltam a vista: a denúncia do racismo, a crítica ao colonialismo, o acompanhamento da actualidade internacional nomeadamente das revoltas anti-racistas, e a divulgação da cultura negra e dos ideais de emancipação dos negros.

Este é um documento “valioso para a compreensão das formas de pensar e agir cívica e políticamente das comunidades em África e na diáspora”, afirma. Mostra ainda que Portugal estava no mapa das lutas anti-racistas internacionais. Mais à frente, torna-se visível que estes activistas seriam a vanguarda deste movimento, acrescenta. Os paralelos entre o passado e presente são vários. O que mostra “a permanência do racismo na sociedade portuguesa ao longo das décadas”, conclui.

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