À boleia de Oprah, do racismo e da saúde mental, a América rendeu-se a Harry e Meghan

Tristeza, alguma amargura e revelações que expõem a realeza britânica como uma instituição claustrofóbica, insensível a questões de saúde mental e racista. Eis os ingredientes que, à boleia da todo-poderosa Oprah, os duques de Sussex usaram para conquistar os americanos.

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Reuters/HARPO PRODUCTIONS

Archie, o primeiro filho do príncipe Harry e da duquesa Meghan, deveria ter sido príncipe. Mas a alteração das regras, durante a gravidez da ex-actriz, vedou-lhe o acesso ao título e a tudo o que poderia ter-lhe sido entregue de bandeja com este, como a dispendiosa segurança. Algo que abalou profundamente Meghan, que suspeita da razão por que isso foi decidido: houve, segundo Harry lhe relatou, conversas sobre o quão escuro viria a ser um bebé do casal.

O príncipe recusou-se a partilhar o que foi dito ou a dizer quem disse o quê, mas Oprah já veio dizer que não foi Isabel II nem o príncipe Filipe. Contudo, a semente estava lançada: o racismo foi levado para o centro da conversa, numa entrevista exclusiva e milionária (a CBS pagou à produtora da norte-americana sete milhões de dólares, ou 5,9 milhões de euros), transmitida, no domingo à noite, no horário nobre televisivo. 

E, num país profundamente magoado com o racismo, acabado de sair de um ano tumultuoso sob o signo do movimento Black Lives Matter, as reacções não se fizeram esperar: a tenista profissional Serena Williams partilhou no Twitter uma mensagem de apoio a Meghan, cujas palavras, para si, “ilustram a dor e a crueldade que viveu”. Por seu turno, Amanda Gorman, a activista de 23 anos que brilhou na tomada de posse de Joe Biden, avaliou que “Meghan foi a maior oportunidade da Coroa para a mudança, regeneração e reconciliação numa nova era”.

Já para Oprah este não é assunto de varrer para debaixo do tapete. E se a mera simpatia que nutria pelo casal era suficiente para o acolher no seu ultraprotegido círculo de amigos, a noção de que ambos e o filho foram vítimas de preconceito racial faz com que uma das 20 mais poderosas mulheres do planeta, segundo a Forbes, os coloque sob a sua asa, estendendo-lhes a passadeira vermelha para que os americanos os adoptem.

Inclusive a imprensa, que nutre pouca simpatia por o que os seus pares fazem do outro lado do Atlântico, tablóides e não só. O The New York Times, por exemplo, questionou a notícia que saiu no reputado The Times de Londres no início da semana passada, em que se explorava uma queixa de bullying contra a duquesa e no qual “a maioria das citações é atribuída a fontes anónimas que descrevem os efeitos do alegado comportamento do casal sem identificar incidentes específicos”.

E acusar Meghan de ser agressora não é algo de pouca importância, quando a própria se queixa de ter sofrido bullying, fosse na forma como se sentiu isolada pela própria família e respectiva entourage (Meghan chama-lhe “A Firma”), fosse no sentido de se ter sentido desprotegida. A solidão tornou-se de tal forma “intransponível” que, desabafou a Oprah, chegou a perder a vontade de viver: “Só não queria mais estar viva.” Sentimentos acompanhados de vergonha e impotência, sobretudo depois de ter requisitado autorização para procurar ajuda e o pedido lhe ter sido negado.

Harry não sabia como a apoiar: “Não fazia ideia do que fazer, não estava preparado para isso, fui também [arrastado] para um lugar muito escuro”, confessa. Até porque, por “vergonha”, não podia recorrer à família: “Isso não é uma conversa que se possa ter.” E justifica: “Para a família, há muito a mentalidade de: ‘É como tem de ser.’ ‘É assim que é suposto ser, não se pode mudar, todos já passámos por isso.’”

A alusão às questões relacionadas com saúde mental atraiu a atenção da Casa Branca. À CBS, a porta-voz Jen Psaki teceu um comentário sobre a entrevista: “Uma pessoa vir falar publicamente das suas próprias lutas com a saúde mental e contar a sua história pessoal – isso requer coragem, e isso é certamente algo em que o Presidente acredita.”

Ao longo de um especial de quase duas horas, os duques ainda levantaram o véu sobre o bebé que aí vem (“é uma menina!”), teceram generosos elogios à rainha (Meghan diz que é “maravilhosa”; Harry declara: “É a minha coronel-chefe, certo? Será sempre”); e declararam-se conquistados pela Califórnia, onde, acreditam, encontraram uma vida “melhor do que qualquer conto de fadas”.

No fim das duas horas de uma emissão que atraiu, nos EUA, uma audiência de 17,1 milhões, o casal conseguiu um selo de quase indesejáveis estampado pelos mais protectores da monarquia britânica, com alguns comentadores a desfiarem chorrilhos de impropérios contra os duques. E não devem estar nas boas graças nem do príncipe Carlos, que ficou a saber-se que não atende o telefone a Harry; nem de William, que viu o nome da mulher ser arrastado para a conversa, e não pelas melhores razões.

Mas quem quer saber disso? O jovem casal provavelmente não. Interessa-lhes, no entanto, a tal “almofada” de aceitação (e de protecção) que a entrevista lhes terá proporcionado junto dos que influenciam a opinião pública americana. É que serão os americanos, e não os britânicos, que poderão vir a ser decisivos para o sucesso dos projectos que lhes irão pagar as contas, dos mais mediáticos, como os que assentam nos acordos com a Netflix ou com o Spotify, à fundação de solidariedade que criaram já em solo americano, a Archewell. É que, como alguém cantou, “o dinheiro faz o mundo girar”.

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