Há 6 mil fotogramas que vão mostrar como era Guimarães na segunda metade do século XX

Simão Freitas tirava fotografias de tudo o que acontecesse em Guimarães: obras, manifestações, partidas de futebol. Depois do encerramento da sua loja, a Foto Simão, um funcionário ficou com milhares de negativos que contam a história do concelho entre os anos 60 e 90 do século passado. Esta semana, a autarquia anunciou a aquisição desse espólio e já se prevêem exposições.

cultura,fotografia,artes,local,guimaraes,25-abril,
Fotogaleria
A Câmara Municipal
cultura,fotografia,artes,local,guimaraes,25-abril,
Fotogaleria
cultura,fotografia,artes,local,guimaraes,25-abril,
Fotogaleria

Naquele dia de Abril de 1974, os estudantes de Guimarães correram para o Largo Cónego José Maria Gomes, que se estende entre o edifício da Câmara Municipal e a Biblioteca Raul Brandão. Manifestavam, de punho erguido e segurando cartazes, a conquista da liberdade e a queda do Estado Novo. Esse momento guardou-se na memória de quem lá esteve, mas também se eternizou numa fotografia. Atrás da câmara estava Simão Freitas que, durante a segunda metade do século passado, foi “o fotógrafo não oficial de Guimarães”.

“Ele andava sempre com a máquina fotográfica e registava tudo, desde mendigos a figuras importantes da cidade, em todas as zonas da cidade. Tirava fotos de tudo: das obras, da evolução do centro, das Nicolinas”, recorda outro Simão Freitas, o filho, também ele fotógrafo e fotojornalista, muitas vezes companheiro do pai nesses registos. Na antiga Foto Simão, que fechou em 2005, trabalharam juntos durante 20 anos. O pai faleceu três anos depois. Quando a loja fechou, um dos funcionários, que ficou “com parte da loja”, trouxe o que mais lhe interessava: “Máquinas fotográficas e negativos, que guardei até hoje.” Nesses mais de 6 mil negativos conta-se boa parte da história do concelho vimaranense entre o final da década de 50 e a década de 90. O funcionário, entretanto tornado fotógrafo e proprietário da sua própria loja, é José Carlos Moreira.

Agora, os milhares de fotogramas saem de casa do fotógrafo para a Câmara Municipal de Guimarães e serão tratados pelo Arquivo Municipal Alfredo Pimenta. “Estive 15 anos com isso e achei que era altura [de cedê-los]. Nunca os expus, estavam fechados nos envelopes e não tinha interesse em vendê-los”, explica José Carlos Moreira. Década e meia volvida, esse espólio foi adquirido por 8 mil euros pela autarquia. A fotografia descrita no arranque deste artigo é uma das quatro já divulgadas aquando do anúncio da aquisição.

Foto
O estádio

Este espólio fotográfico nunca esteve perdido — e a autarquia “já o ‘namorava’ há muitos anos”, contextualiza a vereadora da Cultura e vice-presidente do município, Adelina Paula Pinto. Não é que houvesse “uma falha” no arquivo fotográfico da vida em Guimarães entre as décadas de 60 e 90 (sobretudo), mas o registo existente “era, todo ele, muito institucional”, acrescenta. Já “muita gente sabia da existência” deste espólio; por isso, a aquisição dos negativos de Simão Freitas, também fotojornalista em jornais desportivos como A Bola, deixa os vimaranenses “expectantes”. Conhecidas já são, também, as fotografias “da primeira comissão administrativa nomeada pelo Governo no pós 25 de Abril”, onde figura “um antigo presidente, Mariano Felgueiras”. E há ainda duas imagens aéreas: uma do antigo estádio e outra do Centro Histórico da cidade.

Trabalho para um ano (depois de um namoro de 15)

Paulo Pacheco, técnico do departamento de comunicação da autarquia, conta que já desde há 15 anos vinha a abordar José Carlos Moreira, na tentativa de o convencer a vender o espólio à Câmara. Por que levou tanto tempo? “Não temos explicação. Ele nunca se quis desfazer, mas também não queria fazer dinheiro.” Por seu lado, o fotógrafo diz que decidiu, ao fim de todos esses anos, ceder os negativos “antes que se perdessem e estragassem”. “Digitalizar e fazer tudo era uma coisa muito morosa e a Câmara Municipal tem mais possibilidades”, acrescenta. Foi com Simão Freitas que nasceu para a fotografia: “Fui aprendendo com ele, mas eu era da parte da loja, de atender as pessoas e assim. Fui trabalhar para lá a meio dos anos 80. Ele era um bairrista citadino que gostava de ter memórias de tudo o que se fizesse e foi por isso que foi juntando isto tudo até falecer.” 

Quando o fotógrafo concordou em vender o espólio, Paulo Pacheco viu “uma oportunidade de ouro” para a Câmara, que já tinha “a primeira metade do século em arquivo” desde a “altura da Capital Europeia da Cultura, em 2012”. “Depois, a partir dos anos 60, não há muita coisa” — e agora há um grande contributo para avivar a memória visual.  “Este espólio retrata a viragem do Estado Novo para a democracia, a vivência na cidade, das alterações no ordenamento do território, como a primeira intervenção no Largo da Oliveira nos anos 80, por exemplo”, explica. 

Do conjunto, “a maior parte são negativos de 35mm, em vários formatos. Há meia dúzia de negativos em vidro que ainda não vimos bem”, indica Paulo Pacheco. Os fotogramas precisam, agora, de ser tratados: “Falta algum rigor técnico que temos nos nossos artigos. Vamos demorar alguns meses até concluir este processo, já que são mais de 6 mil. Até poderá chegar aos 7 mil negativos, porque o José Carlos Moreira apareceu, depois da aquisição, com um envelope de negativos do 25 de Abril.”

Foto
Manifestação de estudantes no 25 de Abril de 74

Alexandra Marques, directora do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, explica o porquê de existirem tão poucas fotografias daquele período em arquivo: “Nestas décadas, fotografar essas alterações era uma tarefa que cabia às casas de fotografia, que eram poucas, e não tanto a pessoas. Daí que, destas décadas, não haja muito acervo fotográfico da cidade.” Da década de 70, diz, “não havia nada em arquivo”. Ter, agora, todo este material “é extremamente importante” para a memória e identidade colectivas. Porque, no presente, “olha-se com outros olhos para o século XX, para o salto que Guimarães deu nestas décadas”, aponta Adelina Paula Pinto.

Apesar de o espólio ser conhecido, a autarquia “não tinha previsto” o interesse de tantos vimaranenses em conhecer o passado do concelho. “Não teremos outra hipótese que não fazer uma exposição. Logo que os negativos sejam tratados, vamos seleccionar alguns para ir expondo. Em 2022 vamos fazer uma exposição, mas não com o espólio todo”, adianta. Até lá, há um trabalho que poderá “levar alguns meses ou até um ano”, perspectiva Alexandra Marques. E existe uma “planificação em termos de tempos e tarefas” a cumprir: “São muitas películas. É necessário um trabalho técnico: higienizar os negativos, cortar, descrever, digitalizar e só depois disponibilizar. Faremos por ser o mais breve possível, dado o interesse.”

Sugerir correcção
Comentar