Uma noite atribulada no ramal de Alfarelos

Como a queda de uma catenária pode pôr a nu falhas sistémicas na ferrovia portuguesa. Uma história de incidentes, avarias e atrasos que durou uma noite inteira.

O comboio nº 16831 que saiu esta noite da Figueira da Foz às 19h58 para chegar a Coimbra às 21h00 mal chegou a acelerar. Três quilómetros depois ficou retido em plena via, devido à queda de uma catenária.

É elementar que um comboio eléctrico não pode andar sem electricidade. Nem este nem os outros que circulavam nas imediações, como era o caso de mais dois suburbanos de Coimbra que ficaram retidos nas estações de Alfarelos e de Verride. A estes dois, a CP resolveu o problema e dois táxis bastaram para reencaminhar os poucos passageiros que neles viajavam.

Mas os passageiros do malogrado comboio que ficou parado em plena via só às 22h00 foram resgatados pelos bombeiros de Montemor-o-Velho e transportados para Alfarelos, onde uma automotora os aguardava para os fazer chegar a Coimbra com quatro horas de atraso.

Em tempos de confinamento são poucos os passageiros nos comboios da CP. E estes estão entregues. Mas o que se segue agora é uma demonstração de como tudo pode correr mal na operação ferroviária. Por ter acontecido durante a noite, não trouxe perturbações de maior.

Para poder rebocar a automotora avariada teve de ser enviada uma locomotiva a diesel do Entroncamento, de onde partiu às 23h17 e que só chegaria ao local perto da 1h00.

Não é preciso recuar muitas décadas na CP para se chegar a um tempo em que a empresa tenha tido locomotivas de reserva em estações vitais da rede para prestar socorro rápido em caso de avarias. Nesse tempo havia uma locomotiva em Coimbra ou na Pampilhosa pronta para arrancar em caso de emergência. Actualmente, em toda a linha do Norte e neste ramal só se pode mesmo contar com material de reserva no Porto, Entroncamento e Lisboa. Pior, porém, é que, a sul do Tejo, não há nenhuma máquina para prestar socorro. Se um comboio avariar em Faro, terá de ir uma locomotiva de Santa Apolónia para o resgatar.

O downisizing (termos da gestão que explica a redução de pessoal e de custos de forma “científica”) aplicado à CP deu nestas coisas. Outro exemplo: até há poucos anos havia uma locomotiva a diesel permanentemente de reserva em Campolide para prestar assistência aos comboios da ponte 25 de Abril e aos da linha de Sintra. Hoje isso já não acontece.

Mas por parte do gestor da infraestrutura a coisa não é melhor. A Infraestruturas de Portugal, apesar de o incidente ter acontecido a três quilómetros da Figueira da Foz, não prolongou o guarnecimento da estação durante a noite. Significa isto que o pessoal que terminava o turno às 1h10 fechou a estação e foi-se embora. A Figueira da Foz só voltaria a abrir às 5h00 da manhã.

Não é caso único. Já mais de uma vez, perante um incidente em Santarém, os comboios da linha do Norte ficam parados atrás uns dos outros porque as estações intermédias entre aquela estação e o Entroncamento estão encerradas e, quando surgem problemas, a IP tem dificuldade em guarnecê-las para fazer cruzamentos e poder escoar o tráfego ferroviário.

Voltemos, então, à automotora eléctrica avariada e ao preciso momento em que uma locomotiva 1400 vinda do Entroncamento a vem rebocar. Realizada a manobra de engate, a composição parte à 1h46 e ruma a Alfarelos e depois ao Entroncamento, com destino às oficinas.

Só que, algures entre Alfarelos e Soure, a locomotiva a diesel avaria. Sim. O comboio ficou parado em plena via e a locomotiva que vinha prestar socorro teve agora de pedir socorro para poder prosseguir viagem. Eram 2h51.

Do Entroncamento parte então uma segunda locomotiva. Desta vez, uma 5600, eléctrica, de marca Siemens. Nada como uma marca alemã para resolver problemas. Às 5h51 a nova composição está formada: a locomotiva eléctrica é engatada à locomotiva a diesel avariada que por sua vez está engatada à automotora eléctrica avariada e traz toda a tralha para as oficinas do Entroncamento.

Entretanto, às 4h55 uma brigada da catenária da IP tinha restabelecido a corrente eléctrica no ramal de Alfarelos e a circulação podia reiniciar-se normalmente.

E tudo terminou em bem sem outros estragos que meia dúzia de passageiros atrasados e umas dezenas de ferroviárias da CP e da IP a passarem uma noite atribulada. Não fosse a redução da procura provocada pelo Covid e a coisa ter decorrido durante a noite, maiores teriam sido as consequências.

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