O Acórdão do Tribunal Constitucional no caso EDP: o que se decidiu e não decidiu

Esta decisão do Tribunal Constitucional marcará não só a relação entre o Tribunal Central de Instrução Criminal e o Tribunal da Relação de Lisboa, como também a acção processual dos juízes, procuradores e advogados que intervêm no processo penal português.

1. No seu recente Acórdão n.º 121/2021, o Tribunal Constitucional decidiu, por unanimidade dos conselheiros que integram a sua 2.ª Secção, a questão de constitucionalidade que lhe foi colocada por dois arguidos do chamado caso EDP, um deles o antigo ministro Manuel Pinho. Conhecida a decisão, no sentido da não inconstitucionalidade, logo vieram a público proclamações de vitória e de derrota. Com esta minha intervenção, não me pretendo juntar a esse coro, mas antes dar a conhecer as linhas essenciais do que estava em jogo e do que foi decidido e não decidido, para que cada um possa formar o seu próprio juízo de valor.

O problema normativo enfrentado pelo TC foi o de saber se é ou não conforme à Constituição a não atribuição a um juiz de instrução de competência, durante a fase de inquérito, para apreciar a legalidade de certos actos praticados pelo Ministério Público, designadamente, os actos de constituição de um suspeito como arguido e de aplicação do termo de identidade e residência.

Postas as coisas em termos mais simples, o problema é basicamente este: no decurso do inquérito, a autoridade judiciária que o dirige, o Ministério Público, detém competência para constituir um suspeito como arguido. A validade desse acto está, como é óbvio, dependente da verificação de várias condições definidas na Lei. Se o visado entender que a sua constituição como arguido foi ilegal, perante quem pode “reclamar”? Perante o Ministério Público, autor do acto que ele reputa ilegal, ou perante o juiz de instrução? Se um tribunal – logo o próprio Tribunal de Instrução a quem o pedido de revogação do acto, por ilegalidade, tiver sido dirigido ou, depois, em recurso, um tribunal superior – considerar que o juiz de instrução, na pendência do inquérito, não pode apreciar a legalidade desse acto, essa posição viola a Constituição, nomeadamente, o princípio constitucional da reserva de juiz em matéria de restrição de direitos fundamentais?

2. Foi isto que se passou no caso EDP. O Ministério Público constituiu dois suspeitos como arguidos; estes insurgiram-se perante o juiz de instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal, qualificando como ilegal essa sua constituição como arguidos; esse juiz de instrução considerou ter competência para apreciar a sua “reclamação” e, dando-lhes razão, invalidou os actos praticados pelo Ministério Público. Tal invalidação, a consolidar-se, teria implicações na contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal: uma vez que a constituição de arguido faz com que o “contador” da prescrição recue a zero, aquela invalidação bloquearia esse efeito, mantendo o curso da prescrição que vinha de trás. Neste quadro, o Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando que o juiz de instrução não podia decidir a questão que foi submetida à sua apreciação, por falta de competência, sendo o controlo judicial apenas admissível após o inquérito, nas fases da instrução ou do julgamento. Dando razão ao Ministério Público, a Relação de Lisboa anulou a decisão de invalidação tomada pelo juiz de instrução do TCIC, por falta de competência deste para se pronunciar sobre a questão. Foi precisamente desta subtracção de competência que os visados se “queixaram” junto do Tribunal Constitucional, alegando a titularidade de um direito fundamental ao juiz para avaliar a legalidade da sua constituição como arguidos e da sua sujeição a termo de identidade e residência. Isto, por se tratar de actos do Ministério Público com efeitos negativos sobre direitos fundamentais de que são titulares. Uma posição na qual, aliás, me revejo.

Temos, pois, que nem a Relação de Lisboa nem o Tribunal Constitucional decidiram se aqueles actos do Ministério Público foram ou não ilegais. Decidiram apenas e só uma questão anterior a essa: a da competência do juiz de instrução para, durante o inquérito, controlar a legalidade da constituição de arguido e da aplicação do termo de identidade e residência.

Como é sabido, o Tribunal Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade do não reconhecimento dessa competência. O alcance da sua decisão está longe, no entanto, de se esgotar na específica questão do controlo judicial do acto de constituição de arguido. É que para resolver esse específico problema, o Tribunal Constitucional teve de discutir e decidir um problema prévio, de muito maior envergadura e importância: o de saber se a Constituição admite que ao juiz de instrução seja negado qualquer papel de controlo de actos do Ministério Público e da polícia praticados durante a investigação criminal quando a Lei não lhe conceda, de forma expressa, competência para apreciar a sua legalidade, nomeadamente quando afectem direitos fundamentais das pessoas visadas. A relevância do tema foi assinalada pelo próprio Tribunal Constitucional, ao reconhecer que “não é uma questão menor”.

Trata-se de um tema que envolve o direito dos cidadãos ao juiz durante o inquérito e que vem dividindo autores e tribunais. É justamente este problema que tem estado na base das sucessivas divergências entre o juiz de instrução Ivo Rosa e a Relação de Lisboa, fundando numerosas decisões desta de revogação de decisões daquele: não pelo acerto ou desacerto do decidido, mas pela consideração de que aquele não dispõe da competência de que se vem arrogando para as decidir. Para uns, como é o meu caso, o juiz de instrução deve poder intervir imediatamente, controlando a legalidade de actos do Ministério Público ou da polícia se atingirem direitos fundamentais; para outros, não, devendo o controlo judicial ocorrer somente depois de findo o inquérito. Cada um dos lados apresenta razões de ordem constitucional para fundamentar a sua tese a favor ou contra.

3. Percebe-se agora melhor a importância da decisão que o Tribunal Constitucional foi chamado a tomar. Uma relevância sistémica, poder-se-á até dizer. Pois, para decidir se foi ou não constitucionalmente legítimo o não reconhecimento ao juiz de instrução de competência para apreciar a legalidade de actos de constituição de arguido no caso EDP, teve o Tribunal Constitucional de começar por ponderar se a Constituição admite a subtracção de competência ao juiz de instrução para, no inquérito, controlar actos ofensivos de direitos fundamentais. E a resposta do Tribunal Constitucional foi clara: não, a Constituição não admite tal subtracção.

Partindo-se deste reconhecimento de princípio, a favor da competência judicial em matéria de direitos fundamentais, tudo estará então em saber se o acto em apreço atinge ou não a esfera dos direitos fundamentais da pessoa visada: se sim, o juiz de instrução deve poder intervir; se não, não. Nessa linha, importava avaliar se a constituição de alguém como arguido e a sua sujeição a termo de identidade e residência representa uma afronta a direitos fundamentais. O Tribunal Constitucional não excluiu que, em casos concretos, o possa ser, mas entendeu que, em geral e abstracto, o não é. E por isso, por considerar não estar em causa matéria que atinja direitos fundamentais, concluiu não haver inconstitucionalidade no não reconhecimento ao juiz de instrução de competência para apreciar invalidades relativas à constituição de arguido e ao termo de identidade e residência.

4. Compreende-se, enfim, o que o Tribunal Constitucional decidiu e não decidiu.

Não decidiu se foram ou não válidos os actos de constituição de arguido a que se referiu o recurso. Essa questão de legalidade continua, pois, em aberto, ficando a sua apreciação relegada para fases posteriores do processo, como a instrução ou o julgamento.

E decidiu algo com um impacto sistémico: durante o inquérito, o juiz de instrução dispõe de competência para apreciar a legalidade de actos que contendam com direitos fundamentais, mesmo que a Lei não lhe confira competência para o efeito. Uma posição que, no futuro, marcará não só a relação entre o Tribunal Central de Instrução Criminal e o Tribunal da Relação de Lisboa, como também, evidentemente, a acção processual dos juízes, procuradores e advogados que intervêm no processo penal português.

Este Acórdão do Tribunal Constitucional, relatado pela conselheira Mariana Canotilho, foi subscrito também pelo conselheiro presidente Manuel da Costa Andrade, que, assim, na hora da saída, se despede do Palácio Ratton com aquela que é uma das suas marcas de água como académico e como juiz: a de defensor intransigente dos direitos fundamentais dos cidadãos. Uma bela forma de dizer adeus.

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