Confundir desejo com a realidade

Enquanto não havia vacina elaborou-se na certeza de que surgiria a tempo e horas, e que despoletaria a apregoada recuperação em “V”. Descoberta a vacina, enfrentamos a imprevista, mas previsível, frente da vacinação num ambiente Me and my country first...

A transparência é fundamental para apoiar a democracia portuguesa na resposta aos desafios da emergência sócio-económica criada pela pandemia, em especial o da coesão social, o da expansão real do emprego e o do rendimento disponível, em particular nos escalões mais reduzidos. Fundamental também para a neutralização de populismos, e para a defesa da democracia contra os perigos da emergência de novos fascismos, manifestamente no horizonte da Europa.

Não é óbvia a ligação que estabeleci, mas é mais forte do que se possa pensar. Por exemplo, os impostos continuam a ser devidos, mesmo nos setores em que a fonte de rendimento não existe, não sendo de admirar que venham a emergir descontentamentos que vão no engodo de soluções populistas. Tanto mais quando colossos empresariais de áreas como a tecnológica, farmacêutica, finança beneficiam das infra-estruturas dos países, pagas pelos contribuintes, sem que os seus lucros, em muitos casos, sejam tributados.

Para contrariar estas derivas é essencial o respaldo de uma UE esclarecida, que saiba reconhecer que a realidade sócio-económico da pandemia não é tão temporária como foi e é pressuposto nos meios de intervenção, de que é exemplo o Fundo de Recuperação com doze zeros da UE cantado aos ventos no início de abril de 2020, mas que tarda. Como advoguei no artigo “A UE no limbo da desintegração”, publicado neste jornal em 16.04.2020, “Enfrentamos uma falha de mercado, incluindo do mercado único. O desconfinamento social irá a meu ver demonstrar surpresas no mecanismo de formação de preços. Isto é porque a concorrência, enquanto mecanismo de afectação dos recursos económicos, pressupõe que o mercado existe e pode funcionar de forma a satisfazer as necessidades colectivas de um modo compatível com os valores prevalecentes. O que não será o caso por um período que não é tão temporário quanto a UE pressupõe nas decisões que mencionei.

Urge reconhecer a necessidade de fazer evoluir a intervenção europeia para uma interdependência traduzida no reforço de meios estruturados num horizonte temporal de médio-longo prazo, o que é algo bem diferente da intervenção estruturada no estratagema temporary, targeted, and proportionate inspirado na obtusidade de que a pandemia é, no essencial, problema dos países perdulários.

A recuperação sócio-económica depende do controlo epidemiológico. É tempo de perguntar se não há imprudência excessiva ao confundir-se desejo com realidade, prevendo o futuro na hipótese #Vai Correr Tudo Bem”? Enquanto não havia vacina elaborou-se na certeza de que surgiria a tempo e horas, e que despoletaria a apregoada recuperação em “V”, até final de 2020 a qual vai deslizando no calendário. Descoberta a vacina, enfrentamos a imprevista, mas previsível, frente da escala da vacinação num ambiente Me and my country first...

Acrescem perplexidades: enquanto não há vacinação a máscara é obrigatória pois é essencial para a prevenção, mas é paga, mesmo por quem está sem rendimento, sendo a vacinação gratuita... Inexata também a hipótese aceite sobre a evolução do vírus, não obstante alertas como o do chefe-adjunto do programa de doenças do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, Piotr Kramarz, que em 29.08.2020 reiterou que a hipótese de um novo confinamento não está descartada ao afirmar que “teremos que ver como a situação evolui. É muito difícil prever porque é um vírus muito novo e epidemológico e, apesar de termos aprendido bastante nos últimos seis, sete meses, ainda há muitas incógnitas”.

Existem outros indicadores que interpelam a que se reconheça a muito elevada incerteza e perigos que enfrentamos, mas que persistem sem ponderação adequada na intervenção da UE e nas expectativas sobre o futuro que se criou nas sociedades, pessoas e empresas, incluindo em Portugal. É tempo de enfrentar devidamente as declarações do presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Fernando Almeida, que declarou em 02.05.2020 que a pandemia de covid-19 levou a uma mudança de comportamentos da população que se vão manter. “Os nossos comportamentos daqui para o futuro jamais serão os mesmos, mas não é para agora, um ou dois anos ou três anos, jamais serão os mesmos.”

Neste fundo de tão vasta incerteza, de desconfianças internacionais e de outros factores de turbulência, pergunto à presidente Von der Leyen: em 21.01.2021 declarou que “existem algumas variáveis a tomar em consideração. Por exemplo, a questão médica: a vacinação inibe a transmissão do vírus pela pessoa vacinada? Nós não temos resposta nisto. E por quanto tempo é a vacinação efectiva? Nós também não sabemos isto ao certo.” Sendo assim, considera adequado o atual traçado da intervenção europeia? Não existe o perigo que a intervenção da UE seja uma carica para tapar um gargalo que entretanto se tornou num poço? Existindo, não é bem real o perigo de desintegração da UE?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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