A UE no limbo da desintegração

Esta é a hora decisiva em que a UE tem que mostrar que é capaz de traduzir urgentemente em atos a ambição retórica de afirmar que o séc. XXI é o século da Europa.

O Papa Francisco, na homilia Pascal, afirmou que “hoje a União Europeia tem perante si um desafio histórico do qual dependerá o seu futuro, assim como o do mundo inteiro”. Este alerta deverá ser lembrado na contagem decrescente para o Conselho Europeu de 23 de abril. Sob a retórica do “will do whatever it takes”, a verdade é que a UE tarda em dar uma resposta adequada à magnitude das necessidades desencadeadas pela pandemia.

Os atos e documentos divulgados pelo Conselho Europeu, Comissão Europeia, Eurogrupo e BCE no lapso temporal entre 12.03 e 14.04.2020, que li e reli, apresentam em comum uma estratégia de resposta baseada num princípio de interligação (“interconnected” ou ”interlinkages”), entre economias. Mil vez não! Isto não serve os interesses da UE, de Portugal, da zona euro, da economia mundial ou da paz.

Não obstante os lúcidos apelos de Costa, Sánchez, Conte ou Macron, mais uma vez a UE deu prova de falta de largueza de vistas, em especial no apurar de fórmulas compromissórias entre os interesses em presença. E reiterou, ainda que de modo indirecto, uma orientação vigente desequilibrada em favor dos Estados centrais, de grande dimensão, exportadores de capital e tecnologia. Mostrando assim que não compreendem que um país não é uma realidade excel, e que estão habitados pelo espírito soez que descrevi no artigo “A Reguada de Schäuble”, publicado neste jornal em 2016. 

Se o problema é para ser encarado com a mínima possibilidade de êxito, é fundamental e urgente erigir um esforço de cooperação baseado no reconhecimento do duplo princípio da interdependência entre Estados-membros, e da necessidade de intervenção reportada ao todo da ação da UE, dirigida por um joint recovery plan –​ dito de espécie de Plano Marshall Europeu –, com prioridade à sociedade, à segurança e não apenas à economia. Afirmo que se é verdade que estamos perante um fenómeno novo, que não é comparável a nada de conhecido, incluindo a uma guerra, não é menos certo que existem pontos-chave que podem ser tidos como estáveis para delinear estratégias de médio-longo prazo independentes de fatores temporários, com prioridade à sustentabilidade ambiental, económica e social em ordem ao bem-estar societal. Sem preocupação de exaustão, destaco os seguintes:

  1. A raiz do problema tem natureza internacional e a intervenção necessária está fora do raio de possibilidade do domínio nacional. Enfrentamos uma falha de mercado, incluindo do mercado único. O deconfinamento social irá a meu ver demonstrar surpresas no mecanismo de formação de preços. Isto é porque a concorrência, enquanto mecanismo de afectação dos recursos económicos, pressupõe que o mercado existe e pode funcionar de forma a satisfazer as necessidades colectivas de um modo compatível com os valores prevalecentes. O que não será o caso por um período que não é tão temporário quanto a UE pressupõe nas decisões que mencionei.
  2. Num horizonte temporal alargado, a mensagem de fundo da união económica e monetária, de acordo com a qual a despesa tem que viver dentro dos limites da receita, estará secundarizada e convertida ao déficit virtuoso. Em paralelo irrompeu já uma forte dinâmica de restrições aos movimentos internacionais de capitais, e de protecionismo, que se irá acentuar, o que de par com um contexto de taxas de juros negativas, de my country first, de encarniçamento entre EUA e a UE, e de outros fatores, deixa prever uma forte pressão nos mercados de dívida, e que a bazuca do BCE não seja tão poderosa quanto se julga.
  1. Tal como reconheceu o comissário Gentiloni em 9.04.2020, “os nossos governos colocaram muito dinheiro na mesa – cerca de 3% do PIB, em medidas fiscais, e 16% do PIB, em garantias de liquidez –, mas estes compromissos muitas vezes reflectem mais a margem de manobra orçamental dos países do que a escala das suas necessidades. Corre-se o risco de aumentar a divergência entre as nossas economias, o que é algo que não nos podemos permitir”. Dito de outro modo: as medidas apresentadas pelo Eurogrupo em 9.04.2020 originam uma dinâmica económica de aprofundamento dos desequilíbrios regionais do mercado único, que já hoje se encontram bem evidenciados nos números do PIB regional da UE, por habitante. Tornando mais importante a localização geográfica central para mercados e empresas competitivas. Atrofiando assim as condições de concorrência a partir de geografias periféricas, como a portuguesa. Isto é algo que penaliza em especial as nossas micro e PME: que são a roda pedaleira do investimento, da inovação, da diversificação produtiva, do desenvolvimento regional e da criação de emprego. E agentes decisivos na luta contra flagelos sociais, como comportamentos sociais desviantes, fluxos financeiros ilícitos e radicalização política.

Esta é a hora decisiva em que a UE tem que mostrar que é capaz de traduzir urgentemente em atos a ambição retórica de afirmar que o séc. XXI é o século da Europa. A alternativa é entre escolher a via da interdependência entre Estados-membros na resposta à pandemia, ou enfrentar o limbo da sua desintegração. Apelo a que a interdependência (o que é algo de bem diferente de interligação) seja materializada através de um conjunto de políticas públicas inovadoras com ênfase na harmonia social, orientadas por um Master Plan reportado ao todo da ação europeia e assente numa pool de recursos cuja natureza não crie problemas maiores do que aqueles que ambiciona resolver.

Confio que o bom senso prevalecerá e que o Papa Francisco será escutado, e nesta aspiração retenho com esperança a declaração conjunta de Michel, Von der Leyen, Lagarde e Centeno em 31.03.2020: “É tempo de pensar outside of the box. Qualquer opção compatível com os Tratados da UE deverá ser considerada.” Aguardemos.

P.S.: No pontos 2 e 5 da “Proposta de reforço das medidas anunciadas pelo Governo”, que enviei a este jornal em 18.03.2020, propus a isenção de imposto do selo. Faço notar que sem base produtiva não há independência económica portuguesa. As recapitalizações via empréstimos confrontam todos e cada um com a sua capacidade de reembolsarem, ou não, o crédito que estão a contrair. Pergunto, ponderando a natureza histórico-política do imposto, qual é a legitimidade do imposto do selo aplicável a estes empréstimos contraídos devidos à falha de mercado originada pela pandemia?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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