Acordei zangada com o meu país

Só a Educação e a Cultura podem contribuir para a construção de comunidades informadas, cívicas e com espírito crítico.

Acordei zangada com o meu país, mas sobretudo zangada comigo e com todos os dias em que pereci, preguicei, me desfoquei e não fiz tudo o que podia, tudo o que estava ao meu alcance. Porque a única conclusão que podemos tirar dos resultados eleitorais deste domingo é mesmo esta: a de que falhamos coletivamente e ignoramos que havia uma onda fascista, machista, xenófoba, homofóbica, discriminatória, ignorante, recriminatória da diferença e promotora do ódio e da agressão fácil, que distingue quem é de “bem” e quem não é, antidemocrática e fundada em estereótipos ditatoriais e absolutistas a crescer diante dos nossos olhos. Meio milhão. Meio milhão de cidadãos depositaram o seu voto nesta ideia.

Tenha sido por convicção ou por ignorância e frustração, certo é que a tal onda cresce perante a impavidez e a inércia de todos, enquanto continuamos a preferir papar séries e fazer bolinhos, desligados do mundo lá fora a arder em caos, numa paz podre celestial disfarçada da visão dos pastorinhos e da fé na Nossa Senhora. Interessa pouco quem ganhou, até porque estava anunciado à partida que assim seria. Interessa olhar para este meio milhão e pensar do que estaremos todos afinal a fazer para conter este estado de coisas. Estamos tão focados no controle da pandemia, no controle do cidadão criminoso que se estica na sua volta higiénica que nos distraímos de proteger o bem maior que é a Liberdade, a essência da Democracia. Acordei sem conseguir arredar os números da mente, a olhar em volta tentando perceber onde estão as centenas de fascistas que moram na mesma cidade que eu.

Dizia-me o meu pai muitas vezes que não podemos andar cá por ver andar os outros. Nunca fez tanto sentido e fazer de conta que não é nada connosco, que não nos afeta e que é inevitável é apenas mantermos a responsabilidade nos outros que, honestamente, deixei de saber quem são. Somos nós que temos que refrescar o sistema e a nossa estrutura democrática para travar esta escalada. Não é ser contra: é antes fazermos com que tudo mude e se renove a partir de dentro, a começar pela crença que todos precisamos de ter nas estruturas partidárias que acreditamos serem democráticas. A discussão que o ontem devia ter suscitado está muito para lá do que é esquerda ou direita, mais ou menos liberal. A discussão não é ideológica até porque este meio milhão depositou o seu voto num candidato e numa estrutura sem ideologia. Trata-se apenas de um vociferador de ódio e má educação, de um nazi disfarçado de rapaz de bem. Já dizia Zeca Afonso, sem se enganar que “O país vai de carrinho / Vai de carrinho o país / Os falcões das avenidas / São os meninos nazis.”

É por isso que é preciso fazer teatro, escrever poesia, promover a música e as artes plásticas, abrir os museus e as salas de espetáculos e espalhar livros pelas caixas de correio. Só a Educação e a Cultura podem contribuir para a construção de comunidades informadas, cívicas e com espírito crítico. É preciso que se estimule o ensino generalizado – na Escola, nos locais de trabalho de todos os setores de atividades, nos meios de comunicação social – de filosofia e de História, para que despertem consciências para uma visão mais alargada do mundo, distanciada do estado castrador de frustração, e aberta ao comparativo e ao humano. Precisamos de tecidos e contextos quotidianos mais solidários e, sobretudo, precisamos de líderes humanista e universalistas, convictos da força e no poder do conhecimento e não em charlatões que se consideram enviados dos deuses.

É preciso educar e ter nas prioridades do Estado a educação e a saúde para todos, independentemente da sua condição de partida. É preciso não ter dúvidas que a cultura educa e nutre e que o contacto diário com a criação artística, com a Arte, interpela o pensamento assintomático de tolerância e fechado para a servidão das massas. Mas, nesta fase, depois de meio milhão, lamentavelmente, a coisa já não vai lá só com pedagogia e vai ser preciso muita coragem para marretadas na cabeça e patadas na boca. Já não estamos em tempo de revoluções com cravos e utopias e teremos, muito em breve, que cerrar fileiras e gritar bem alto que não passarão.

É por isso que temos que deixar de ser neutros e assumir uma posição, ter voz ativa e lutar. O tanto faz trouxe-nos aqui, a este dia que será, sem dúvida, um dos mais negros da nossa história democrática. Acabou o tempo do silêncio e da abstenção. Com ou sem pandemia, não coloquemos voluntariamente uma mordaça sobre as nossas ideias e sobre as nossas vontades.

Honremos a Liberdade que outros conquistaram por nós e façamos mais, façamos tudo o que está ao nosso alcance para sensibilizar o vizinho, para influenciar outros neste amor à Liberdade. Temos o dever de nos indignarmos e de reverter esta onda porque o porvir já se sabe qual é, a História não mente. Comecemos pela Cultura, pela Arte. Comecemos por reclamar o que a pandemia teima em nos querer tirar, sem motivo aparente. Comecemos pelo Teatro, pela Poesia, pela Música, pela magia que acontece nos palcos e por todas as formas de criação plástica e visual. E porque não oferecer livros com as contas da luz para iluminar as mentes, despertar consciências e promover a discussão das ideias informadas, argumentadas e não a má educação? Vamos abrandar esta curva de meio milhão fazendo da cultura a nossa causa, a nossa missão.

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