Vandalismo em nome da ciência: cortar árvores para contar carbono na Amazónia

Com o desmatamento na Amazónia a bater recordes, investigadores brasileiros procuram saber quanto carbono pode estar armazenado em diferentes partes da maior floresta tropical do mundo. É vandalismo em nome da ciência.

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Reuters/JAKE SPRING

Cientistas munidos de machetes aventuram-se na Amazónia, invadindo a selva densa, enquanto a temperatura a meio da manhã já ultrapassa os 38ºC. Encharcados em suor, o pequeno grupo de homens e mulheres serra e arranca árvores, ramo a ramo. Perfuram o solo e pulverizam tinta em troncos das árvores.

Isto é vandalismo em nome da ciência.

Nas árvores a cerca de 90 quilómetros de Porto Velho, capital do estado de Rondónia, os investigadores brasileiros procuram saber quanto carbono pode estar armazenado em diferentes partes da maior floresta tropical do mundo, ajudando a remover da atmosfera as emissões que fomentam as alterações climáticas.

“É importante porque estamos a perder florestas a nível mundial”, diz Carlos Roberto Sanquetta, professor de engenharia florestal da Universidade Federal do Paraná, no Brasil. “Precisamos de compreender qual é o papel que as florestas desempenham”, tanto na absorção de carbono quando são deixadas intactas, como na libertação dos gases com efeito de estufa quando são destruídas.

Sanquetta liderou a expedição de investigação de uma semana, em Novembro, supervisionando uma equipa que incluía um botânico, um agrónomo, um biólogo e vários outros engenheiros florestais, para recolher uma miríade de amostras de vegetação — viva e morta —​para análise.

É um trabalho rigoroso e complicado, muitas vezes em condições húmidas e infestadas de insectos, envolvendo motosserras, pás, saca-rolhas gigantes e paquímetros.

“Estes não são os cientistas de bata branca que apenas dão aulas”, disse Raoni Rajão, especialista em gestão ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais, que não está envolvido na equipa da Sanquetta. “Estas são pessoas trabalhadoras que sujam as mãos.”

Abordagem holística

A equipa brasileira é apenas uma entre centenas de investigadores que procuram medir o carbono no complexo e crucial ecossistema da floresta tropical amazónica, que se espalha por mais de seis milhões de quilómetros quadrados em nove países.

Algumas investigações procuram apenas quantificar o carbono nas árvores, mas Sanquetta diz que a abordagem da sua equipa é holística, medindo carbono em vegetação rasteira, solo e matéria vegetal em decomposição também. Além disso, a sua equipa está a olhar para além da floresta primária, examinando áreas reflorestadas para lançar uma nova luz sobre a quantidade de carbono que possuem  informação chave para incentivar os esforços de restauro.

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O dióxido de carbono (CO2) é o mais prevalente dos gases com efeito de estufa, que fixam o calor na atmosfera terrestre. As árvores absorvem o dióxido de carbono da atmosfera e armazenam-no como carbono, uma das formas mais baratas e fáceis de absorver o gás com efeito de estufa.

No entanto, o processo também funciona em sentido inverso. Quando as árvores são cortadas ou queimadas frequentemente para dar lugar a fazendas ou pastagens de vacas — a madeira liberta de volta CO2 para a atmosfera.

“De cada vez que há um desmatamento, há uma perda, há uma emissão de gases com efeito de estufa”, diz Sanquetta, que é membro do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), a maior autoridade mundial em matéria de ciência climática.

Com as actuais taxas de emissão, espera-se que as temperaturas globais aumentem cerca de 2,9 graus Celsius até 2100, segundo o consórcio sem fins lucrativos Climate Action Tracker, ultrapassando de longe o limite de 1,5 a 2 graus necessário para evitar mudanças catastróficas no planeta. As alterações climáticas aumentam o nível do mar, intensificam as catástrofes naturais e podem estimular a migração em massa de refugiados.

A desflorestação na Amazónia acelerou durante a administração de Jair Bolsonaro, o presidente de extrema-direita do Brasil. Desde a sua tomada de posse em 2019, pelo menos 825 milhões de toneladas de CO2 foram libertadas com a desflorestação da Amazónia brasileira. Um valor que ultrapassa o que todos os automóveis de passageiros americanos emitem num ano.

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Em comunicado, o gabinete do vice-presidente brasileiro Hamilton Mourão, que lidera a política do Governo para a Amazónia, afirmou que o aumento da desflorestação é anterior à actual administração e que o Governo tem estado a trabalhar dia e noite para impedir a exploração mineira destrutiva e o tráfico de madeira.

“Não atingimos o grau de sucesso desejado, mas poderia ter sido pior”, lê-se na declaração.

Medições meticulosas

Trazer mais precisão às medições de carbono nas florestas em retrocesso é a chave para compreender e enfrentar a ameaça climática. Todos querem ter esta informação”, diz Alexis Bastos, coordenador do projecto sem fins lucrativos do Centro de Estudos Rioterra, uma organização brasileira que fornece apoio financeiro e vários cientistas à equipa da Sanquetta.

Actualmente, há cientistas a medir o carbono florestal em quase todos os continentes. Para além da equipa da Sanquetta, por exemplo, a Amazon Forest Inventory Network, com os seus mais de 200 cientistas parceiros, está a tentar padronizar o carbono e outras medições, reunindo enormes quantidades de dados para “quantificar” a floresta.

O desafio é existirem “diferenças nas espécies em toda a Amazónia. No Peru, no sudoeste, e na Guiana, no nordeste, não há praticamente nenhuma sobreposição de espécies, pelo que são plantas completamente diferentes exactamente no mesmo clima”, explica Oliver Phillips, coordenador da rede e ecologista tropical da Universidade de Leeds, no Reino Unido.

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Os parceiros da rede utilizam parâmetros precisos para capturar os principais reservatórios de carbono, inclusive em matéria vegetal morta e no solo. Por exemplo, se uma árvore estiver na fronteira de uma parcela, só deve ser medida se mais de 50% das suas raízes estiverem na parcela.

Nenhuma equipa poderia esperar recolher, sozinha, amostras suficientes da vasta floresta tropical para uma contagem exacta do carbono abrigado pela Amazónia. É também um alvo em movimento: a floresta tropical amazónica, que varia de selva emaranhada a espaços ribeirinhos mais abertos, está em constante mudança, uma vez que cada vez mais árvores são cortadas ao mesmo tempo que os esforços de restauro aceleram.

A equipa da Sanquetta iniciou a sua actual investigação em 2016, contando com o apoio da Rioterra, a qual recebeu financiamento da Petróleo Brasileiro SA (Petrobras), a empresa petrolífera estatal brasileira. Na altura, a Rioterra estava a replantar áreas de floresta tropical destruídas, e queria saber quanto carbono estava a ser sequestrado.

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Mateus Sanquetta separa os materiais recolhidos na Amazónia, na Universidade do Paraná. Rodolfo Buhrer/Reuters

A Petrobras disse à Reuters, em comunicado, que trabalha há anos para honrar os seus compromissos de “responsabilidade social”, o que, entre outras coisas, significava fornecer energia enquanto “superava os desafios da sustentabilidade”.

Cada expedição de uma semana custa cerca de 200 mil reais (29 844 euros). Sanquetta diz que o seu projecto não recebeu nenhum dinheiro da Petrobras directamente. Quando o financiamento da Petrobras secou, a Rioterra encontrou apoio do Fundo Amazonas, apoiado pelos governos do Brasil, Noruega e Alemanha.

Os resultados preliminares indicam que plantar uma mistura de espécies amazónicas é mais eficaz em sequestrar carbono do que permitir que a área volte a crescer naturalmente.

Mas os resultados também sugerem que não há nenhum substituto a deixar as florestas intocadas: um hectare de floresta virgem de Rondónia retém uma média de 176 toneladas de carbono, de acordo com a análise da Sanquetta dos dados do Ministério da Ciência brasileiro. Em comparação, um hectare de floresta replantada após dez anos retém cerca de 44 toneladas, e as explorações de soja detêm uma média de apenas duas toneladas.

Curar o planeta

No meio da selva, os membros da equipa de Sanquetta golpeiam enxames de abelhas sem ferrão, enquanto dissecam um terreno de dez por 20 metros que tem vindo a crescer naturalmente há quase dez anos, abandonado por um agricultor.

A equipa contou 19 árvores com troncos de pelo menos 15 centímetros de circunferência, o limiar acima do qual as árvores geralmente contêm significativamente mais carbono. Edilson Consuello de Oliveira, um botânico de 64 anos do vizinho estado do Acre, enrola uma fita métrica à volta de uma delas.

Bellucia!”, gritou, ao identificar Bellucia grossularioides, uma árvore frutífera que é das mais rápidas a voltar a crescer. O botânico debita as medidas, enquanto outro cientista as rabisca.

Um biólogo prega marcadores numéricos nos troncos das árvores. Entretanto, alguns membros do grupo cortam uma árvore com uma serra eléctrica, tendo-a seleccionado para “autópsia”. O tronco tosquiado foi cortado em pedaços, as folhas despojadas e ensacadas, e o cepo escavado e pesado numa balança pendurada nos ramos acima.

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“É destrutivo, mas só o fazemos a algumas árvores”, salvaguarda Sanquetta.

Um outro grupo enfia um saca-rolhas de metal motorizado, de um metro de altura, e perfura a terra em quatro locais diferentes. As amostras são depois levadas para o laboratório, onde a equipa as seca e pesa, antes de as incinerar numa câmara de combustão seca que lhes permite medir a quantidade de carbono contida.

A equipa mediu 20 parcelas durante uma semana de trabalho em Novembro. O objectivo final é de 100 parcelas até ao final deste ano. O trabalho oferece “uma forma de medir a saúde do planeta”, disse Rajão, mas também “a rapidez com que o planeta poderia ser curado”.