Esta revolução de Trump falhou

Apesar do regime democrático não ter caído a 6 de Janeiro, o perigo nos EUA não desapareceu como por magia. O perigo está nas mentes de metade dos americanos que se converteram a uma realidade virtual alimentada por Trump durante quatro anos. O perigo está também fora dos EUA nos movimentos que, um pouco por todo o Mundo, se reclamam do mesmo elixir salvador das pátrias em perigo.

Ao ver as imagens, em directo, da invasão da casa da democracia dos EUA, é impossível não ter a sensação de déjà vu quanto a tantos outros momentos da História que mudaram o mundo. Só que, desta vez, ao vivo e a cores. Ao olhar para a televisão, parecia que estávamos a viver uma reedição da invasão do Palácio de Inverno em Petrogrado em 1917, símbolo do poder na Rússia e onde, sob a direcção determinada de Lenine, se deu a ocupação violenta da residência dos Czares. Ou, ainda, o incêndio do Reichstag em Berlim em 1933, que serviu para Hitler justificar o estado de sítio que lhe permitiu governar sozinho até à derrota da Alemanha em 1945. Ou também, a marcha sobre Roma em 1922, que levou Mussolini ao poder absoluto. Ou até o golpe de 18 de Brumário do ano VIII (9 de Novembro de 1799), quando Napoleão aprisionou o Parlamento e onde iniciou o seu caminho até ao Império.

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Ao ver as imagens, em directo, da invasão da casa da democracia dos EUA, é impossível não ter a sensação de déjà vu quanto a tantos outros momentos da História que mudaram o mundo. Só que, desta vez, ao vivo e a cores. Ao olhar para a televisão, parecia que estávamos a viver uma reedição da invasão do Palácio de Inverno em Petrogrado em 1917, símbolo do poder na Rússia e onde, sob a direcção determinada de Lenine, se deu a ocupação violenta da residência dos Czares. Ou, ainda, o incêndio do Reichstag em Berlim em 1933, que serviu para Hitler justificar o estado de sítio que lhe permitiu governar sozinho até à derrota da Alemanha em 1945. Ou também, a marcha sobre Roma em 1922, que levou Mussolini ao poder absoluto. Ou até o golpe de 18 de Brumário do ano VIII (9 de Novembro de 1799), quando Napoleão aprisionou o Parlamento e onde iniciou o seu caminho até ao Império.

O passado da Humanidade está recheado destes momentos de golpe de que apenas alguns são bem-sucedidos. No caso do 18 de Brumário, e apesar da confusão do que aconteceu nesse dia, Napoleão veio a marcar a História da Europa e do Mundo. Em Portugal, podemos recordar, no tempo do PREC, o cerco (sem invasão) do Parlamento pelos trabalhadores da construção civil, devidamente enquadrados pelas forças políticas da esquerda totalitária. Não nos saiu a república dos sovietes porque afinal era só fumaça.

Neste 6 de Janeiro de 2021, não tínhamos dúvidas de que estávamos a assistir, na poltrona, a um evento Histórico, cujas repercussões iriam marcar o início do século XXI. O espectáculo – gerador de calafrios – era aterrador e impressionante.

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Multidão invadiu símbolo da democracia norte-americana. Sem máscara, armados e incentivados por Donald Trump, os manifestantes furaram barreira policial e pedem recontagem dos votos. Quatro pessoas morreram.

Miguel Dantas

O que se passou no Capitólio em Washington, como em tantos outros momentos de ruptura, não surgiu do vazio nem resultou da vontade exclusiva dos seus promotores. Como noutras situações, foi o produto de problemas sentidos por franjas significativas da população, que acabam aceitando a vertigem totalitária como a solução para o impasse em que acreditam viver. É verdade que nos EUA do séc. XXI, assim como em boa parte do Mundo Ocidental, as dificuldades existem, pelo que as condições geradoras de golpes existem também. Acresce que Trump, ao fim de alguns anos de uso intenso do poder telegénico que lhe proporcionavam os media, contabilizava já um êxito político inquestionável, que lhe dava o domínio absoluto no seu partido e a obediência religiosa das mentes de metade da população, todos hipnotizados e rendidos à sua incompreensível sedução encantatória.

As condições estavam então aparentemente reunidas mas, apesar disso, desta vez foi diferente porque Trump não é Lenine, nem Hitler, nem Mussolini e não tem nada a ver com Napoleão. Trump é um fanfarrão cobarde e a sua coragem física é idêntica à sua estrutura moral, já que são ambos conjuntos absolutamente vazios. No dia 6 de Janeiro arengou (por detrás de um vidro à prova de bala) aos seus seguidores para exercerem a coragem de irem com ele ao Capitólio correr com os Republicanos fracos e com todos os Democratas, para impor a salvação da Nação através da sua continuação no poder. Mas, depois, meteu-se no carro blindado e refugiou-se com a família e seguidores mais próximos num bunker da Casa Branca, festejando, em frente à televisão, a visão dos seus kamikazes a humilharem as instituições democráticas americanas. O problema é que, sem a direcção que lhes teria dado Lenine, os seus Proud Boys de vão de escada apenas fizeram o que sabiam: destruição e saque. E como não tinham com eles o Chefe amado para entronizar, beberam uma cerveja e voltaram para casa, enriquecidos com umas aventuras para contar.

O que aconteceu em Washington no dia 6 de Janeiro de 2021 não pode ser menosprezado. O centro do poder da Nação mais poderosa do Mundo foi assaltado e saqueado por um bando de rufias exaltados, sem a oposição das forças da ordem. O conceito básico da Democracia foi escarnecido, já que afinal o poder não vem dos votos, mas sim da força e da insistência de um grupo, como em qualquer república das bananas. Num cenário de regime à beira da dissolução, mais de metade dos deputados Republicanos na Câmara dos Representantes abdicaram das regras constitucionais para se renderem a um chefe salvador e ao êxtase totalitário. E enquanto os amigos e aliados dos EUA assistiam aterrorizados e estupefactos ao que estava a acontecer, os inimigos dos EUA nem queriam acreditar no que viam. A Rússia concluiu oficialmente que a Democracia não é o melhor sistema, a China desejou cinicamente que a paz pudesse voltar aos americanos e a Turquia, entre outros países, aconselharam os seus cidadãos a resguardar-se do perigo nos EUA, exactamente da mesma maneira que o Departamento de Estado dos EUA faz quando alerta cidadãos americanos para que, em países de risco, evitem defrontar situações perigosas. Pior era difícil acontecer, com a reserva de que afinal o regime não caiu, Trump não foi ungido gauleiter e o Presidente eleito pelo voto popular foi, enfim, confirmado.

Apesar do regime democrático não ter caído a 6 de Janeiro, o perigo nos EUA não desapareceu como por magia. O perigo está nas mentes de metade dos americanos que se converteram a uma realidade virtual – que dispensa os factos e o uso da razão – alimentada por Trump durante quatro anos, com o apoio dos media e o consentimento do Partido Republicano. O perigo está também fora dos EUA nos movimentos que, um pouco por todo o Mundo, se reclamam do mesmo elixir salvador das pátrias em perigo. Como acontece na França de Le Pen, na Itália de Salvini, na Alemanha do AfD e na Espanha do Vox. Cá no burgo, finalmente temos no Chega um produto comparável para consumir.

O que é mais extraordinário é que, apesar do sentimento e da emoção de irmandade que comove em conjunto lepenistas, salvinistas, neo-nazis, fascistas e trumpistas, na realidade nada de material os une. Ninguém vê os neo-nazis alemães a correrem em auxílio dos salvinistas italianos, ou os lepenistas franceses a partilharem a sua ambição com os fascistas espanhóis do Vox, nem os trumpistas do MAGA a agradecer a solidariedade do Ventura do Galo de Barcelos. A lógica nacionalista é exactamente o contrário disso mesmo. A América Primeiro, a Itália Primeiro, a França Primeiro, a Espanha Primeiro e a Alemanha Acima de Tudo, todos ambicionam o seu lugar num pódio que, superlotado, acaba inevitavelmente em empurrões assassinos.

Merecemos todos melhor.