A transição digital e os equívocos do capitalismo das plataformas

Existem alguns equívocos a propósito das plataformas colaborativas que remontam à sua filiação comunitária e libertária. Esses equívocos ainda hoje suscitam muitas dúvidas interpretativas e prestam-se a outras tantas polémicas à volta do que poderíamos designar de “colaboracionismo digital”.

Na década que corre entre a bolha das empresas tecnológicas (dot.com) em 1999 e a grande crise de 2009, o capitalismo operou mais uma das suas metamorfoses em direção ao capitalismo das plataformas digitais, o que alguns autores designaram de capitalismo colaborativo (Rifkin, 2014) e outros de capitalismo cognitivo (Boutang, 2007). Esta metamorfose do capitalismo gerou alguns equívocos político-doutrinários que ainda hoje permanecem. Esses equívocos remontam às origens da internet, à sua filiação mais libertária e comunitária, que hoje conhecemos sob diversas designações: economia da partilha (sharing economy), economia das multidões (crowd economy), economia colaborativa (collaborative economy), economia interpares (peer to peer economy, P2P), entre outras. Vejamos, em termos muito sintéticos, alguns dos tópicos principais desta metamorfose do capitalismo.

As propriedades emergentes do capitalismo das plataformas

Comecemos pelas propriedades emergentes do capitalismo de plataformas que se podem resumir, esquematicamente, do seguinte modo:

  1. A desmaterialização e desburocratização de uma atividade ou serviço,
  2. A desintermediação e a reintermediação de serviços por uma plataforma,
  3. A desterritorialização da sede da plataforma ou empresa mãe,
  4. O alargamento da esfera mercantil a áreas até agora ociosas ou expectantes,
  5. Os rendimentos crescentes de escala e a economia das multidões,
  6. Os efeitos de rede e a captura das externalidades positivas,
  7. A privatização de serviços e a sua monopolização ou oligopolização,
  8. A customização do cliente e a cocriação com o utilizador final,
  9. A personalização do colaborador e a precarização da relação laboral,
  10. Mais capital de risco e fundos de investimento e menos crédito bancário.

Os tópicos pertinentes acerca do capitalismo das plataformas

Em segundo lugar, vejamos, também esquematicamente, os tópicos mais pertinentes acerca do capitalismo das plataformas:

  1. Qual é a origem ou proveniência das plataformas, globais e made in?
  2. Qual é o modelo de negócio que adotam, extrativista ou colaborativo?
  3. Até onde as plataformas alteram os hábitos e rotinas do consumidor/utente?
  4. Em que medida contribuem para melhorar o grau de literacia e acesso digital?
  5. Quais os efeitos diretos e indiretos sobre os mercados de trabalho?
  6. Que perturbações introduzem nas cadeias de valor mais tradicionais?
  7. Que relações estabelecem com as coletividades territoriais e as economias locais?
  8. Que impacto têm sobre o rendimento e a fiscalidade locais?
  9. Qual o modelo de ocupação do território, geram mais dispersão ou aglomeração?
  10. Que relações com o ensino superior e o emprego jovem qualificado?

As respostas a estas questões, que nos conduzem da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor-data ou informação são, só por si, um campo imenso de investigação e uma agenda política fundamental que, em conjunto, nos ajudarão a seguir o rumo mais apropriado até ao futuro próximo.

Os equívocos das plataformas colaborativas

Como disse inicialmente, existem alguns equívocos a propósito das plataformas colaborativas que remontam à sua filiação comunitária e libertária. Esses equívocos ainda hoje suscitam muitas dúvidas interpretativas e prestam-se a outras tantas polémicas à volta do que poderíamos designar de “colaboracionismo digital”. Digamos que há um contínuo de “plataformas mercantis e plataformas colaborativas”, mas ainda não há reflexão consistente e consolidada sobre as modalidades colaborativas desse espetro de possibilidades. Essa é a razão principal para os equívocos existentes que algumas plataformas aproveitam para tirar partido em benefício próprio. Dito isto, vejamos, em termos esquemáticos, como se comportam alguns desses “fatores colaborativos”.

  1. Os direitos de propriedade intelectual (DPI), o alargamento não-proprietário

Trata-se, neste caso, de alargar a esfera colaborativa e não-proprietária dos direitos intelectuais e de criar licenças sob condição, por exemplo, os creative commons, para a utilização livre destes direitos.

  1. Digital labour (DL), o alargamento da esfera não-salarial

Trata-se, neste caso, de alargar a esfera colaborativa e não-salarial da relação laboral para a área do trabalho independente e intermitente, no quadro de várias relações remuneratórias pouco claras e mal reguladas, do trabalho freelancer ao trabalho à tarefa.

  1. Mercados biface, o alargamento da esfera não-mercantil

Trata-se, neste caso, de alargar a esfera não-mercantil através da consideração dos chamados mercados biface. Os utentes das plataformas (Google) beneficiam de serviços gratuitos numa das faces do mercado (serviços de busca Google, por exemplo) e a nossa pegada de busca, os nossos traços, são usados e manipulados para serem vendidos na outra face do mercado como espaço publicitários a clientes terceiros. Devemos ou não ser remunerados pelos dados gerados por nós a montante desta cadeia de valor?

  1. Bens comuns, o alargamento a uma nova esfera de bens não-mercantis

Trata-se, neste caso, de alargar a esfera colaborativa à produção de bens e serviços ditos comuns através da mutualização de recursos escassos, maioritariamente de natureza e âmbito comunitários.

  1. Externalidades positivas, alargamento a uma nova esfera de efeitos externos

Trata-se, neste caso, de criar as condições necessárias externas favoráveis e positivas de modo a atrair para a esfera colaborativa, por exemplo, sob a forma de ecossistemas multisserviços, muitos trabalhadores profissionais e amadores que podem prestar serviços técnicos à plataforma em boas condições de qualidade e preço ou, mesmo, gratuitamente.

Como facilmente se verifica, há aqui muita ambiguidade entre estes fatores colaborativos. As relações interpessoais, a informalidade no local de trabalho, os espaços de cocriação, as remunerações variáveis, a geometria variável do horário de trabalho, uma cultura profissional criativa (classe criativa), são os “fatores colaborativos” que prevalecem sobre os “fatores corporativos”, onde se contam os contratos coletivos, os direitos sindicais, a cultura hierárquica e autocrática, as remunerações fixas, os direitos sociais, a cultura fechada sobre o estatuto da profissão. Tudo isto é muito prometedor, mas a bipolarização e a assimetria destes dois mercados são muito desconfortáveis para os trabalhadores, as autoridades regulatórias e outros agentes da cadeia de valor.

Capitalismo das plataformas, os problemas pendentes

Aqui chegados, são inúmeros os problemas pendentes em resultado do alargamento das plataformas digitais, sejam mercantis ou colaborativas. Em todos eles está em causa um continuo de possibilidades, nuns casos a escolha recai sobre a solução mais mercantil, em outros casos recai sobre a solução mais colaborativa. E é esta dupla escolha que torna o capitalismo das plataformas um problema de geometria variável, ao mesmo tempo mercantil e colaborativa. Vejamos, resumidamente, os principais problemas pendentes, sendo que cada plataforma é um caso, tudo dependendo da fase do ciclo de vida em que cada uma se encontra:

  1. A regulamentação/regulação dos direitos de propriedade e de acesso,
  2. A regulação dos direitos remuneratórios no interior da cadeia de valor,
  3. A propriedade/acesso aos dados e a questão dos data incomes,
  4. A produção própria versus a coprodução ou produção pelos pares,
  5. A proteção social versus a exploração (quadro legal e direitos sociais),
  6. A permanência versus a intermitência (conta pessoal de atividade e portabilidade)
  7. A avaliação, vigilância, reputação e quadro de relacionamento empresarial,
  8. A conexão versus desconexão, quadro laboral e quadro familiar,
  9. O crédito bancário, o capital de risco e outras modalidades de financiamento
  10. O risco digital, a iliteracia, a litigância e a responsabilidade social

Notas Finais

A economia das plataformas é uma das formas mais visíveis da revolução digital. Os grandes conglomerados de plataformas, o movimento starting up, a enorme diversidade de plataformas e aplicações, a variedade de novos modelos de negócio digital e engenharia financeira, as incubadoras e os espaços de coworking, a smartificação dos territórios, a grande diversidade e vulnerabilidade do trabalho digital, os equívocos em redor das plataformas colaborativas, as novas formas de risco digital, a iliteracia digital, e o que mais se verá em redor da inteligência artificial e do deep learning, são alguns dos temas principais da economia da transformação tecnológica e digital.

Neste contexto, como agora se comprova com a pandemia da covid-19, os riscos globais e sistémicos, materiais e imateriais, serão uma autêntica provação para a comunidade humana e porão à prova a nossa genuina solidariedade. Doravante, deveremos ter por companhia habitual a carta de riscos globais e sistémicos devidamente atualizada. Por uma razão simples, em matéria de riscos sistémicos a procissão ainda só vai no adro, ou seja, as nossas diferentes pegadas – ambientais, sanitárias, hídricas, digitais, alimentares, securitárias, tecnológicas, industriais – vão devolver-nos com custos acrescidos e graves muitos dos nossos erros de comportamento. Quanto mais conectividade, mais interações fortuitas e descobertas acidentais. Por isso, a grande lição desta pandemia é acerca da economia da atenção e dos nossos comportamentos. Eis, pois, uma excelente oportunidade para reavaliarmos os nossos comportamentos habituais e buscarmos uma outra linha de orientação para as nossas práticas de sociabilidade e convivialidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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