A geoeconomia das plataformas e o homo digitalis

Estamos a falar da revolução digital na sociedade e na economia e da emergência de um denominado homo digitalis, por enquanto pertencente ainda ao domínio da espécie humana!

A geoeconomia das plataformas é uma das formas mais visíveis da revolução digital. A enorme diversidade de plataformas e aplicações, a variedade de modelos de negócio digital e engenharia financeira, as incubadoras e os espaços de coworking, a smartificação dos territórios, a grande diversidade e vulnerabilidade do trabalho digital, as novas formas de risco digital, a iliteracia digital, são alguns dos temas principais da geoeconomia da transformação tecnológica e digital. Neste contexto, a economia do estado-plataforma é uma variante fundamental desta transformação e o homo digitalis uma faceta impressiva e incontornável. Vejamos alguns dos aspetos principais desta geoeconomia das plataformas.

I. A geoeconomia das plataformas

Todas as atividades precisam de uma intermediação e de um agente intermediário. No passado essa intermediação era (é), muitas vezes, pesada e onerosa. De um lado, custos de ineficiência elevados, de outro, apropriação indevida de mais-valias geradas nas respetivas cadeias de valor. É esta intermediação intrusiva e abusiva que está, agora, posta em causa por uma nova intermediação mais leve, mais eficaz e mais eficiente, com ganhos (em princípio?) para todos os agentes da cadeia de valor, consumidores incluídos.

Uma plataforma dirige-se, tendencialmente, para uma “multidão extra-territorial”. Quanto maior for a multidão mais o custo marginal da plataforma se aproxima de zero. Esta é a chamada lei dos “rendimentos crescentes de escala”, uma lei que tende para a concentração e cujo desenlace final pode acabar na formação de um quase-monopólio. A economia das plataformas assenta num dispositivo tecnológico que recolhe, trata e comercializa informação. Quanto maior o volume e a velocidade de processamento da informação primária, maior o valor e a veracidade da informação secundária. A inteligência artificial e os procedimentos de cálculo (algoritmos) são os operadores principais da chamada economia do Big Data.

A economia das plataformas, em função da sua dimensão e natureza, assume a forma de uma rede centralizada, descentralizada e/ou distribuída. Nas redes mais distribuídas as relações entre produtores e consumidores estão lateralizadas e, nessa medida, digamos que as suas posições relativas podem ser revertidas. Neste sentido, poderíamos dizer que os “profissionais dos mercados têm a concorrência dos amadores das plataformas”, o que levanta o problema da confiança e da reputação dos serviços prestados pelas plataformas.

A economia das plataformas lida, na sua essência, com os chamados “mercados biface”. De um lado, os utilizadores atraídos pela plataforma por uma larga gama de serviços praticamente gratuitos. Obviamente, quanto maior é a sua adesão maior é a sua pegada digital. De outro, todos aqueles que necessitam dessa informação preciosa sobre clientes potenciais para vender os seus produtos e serviços. A mais valia da plataforma é a diferença entre um custo marginal decrescente no primeiro mercado e uma comissão por serviços prestados no segundo mercado. Nas grandes plataformas, a lei dos rendimentos crescentes de escala desemboca em mais valias fabulosas.

A economia das plataformas constrói as suas cadeias de valor para lá das fronteiras nacionais, não está presente fisicamente nos territórios onde opera e a desmaterialização das transações permite-lhe manipular os volumes de negócios registados e o pagamento de impostos locais. A extração e exportação de mais valias locais é um problema sério de política fiscal e regulatória.

A economia das plataformas assenta em modalidades de trabalho muito diversificadas que não têm, ainda, no quadro do direito laboral em vigor, uma consagração bem estabelecida, isto é, reina a precariedade. Falamos de diversas modalidades, tais como: trabalho independente, trabalho intermitente, trabalho contributivo, trabalho a pedido, trabalho voluntário, etc. Estão em causa os direitos sociais e sindicais, as remunerações, os benefícios da segurança social, a convertibilidade das diferentes formas de trabalho, o direito à empregabilidade e a proteção da pluriatividade.

A economia das plataformas propõe várias aplicações para os chamados territórios inteligentes ou smartificação territorial. As grandes metrópoles beneficiam destas aplicações ou funcionalidades não apenas para otimizar grandes infraestruturas e equipamentos – poluição, iluminação, mobilidade, saneamento, abastecimento de água – mas, também, para aprofundar a democracia participativa e oferecer serviços colaborativos sob a forma de plataformas de interface entre as coletividades locais e os cidadãos organizados.

A economia das plataformas, na sua fase atual, padece de um défice de regulamentação e regulação face à extraordinária capitalização bolsista das grandes plataformas. Está em causa não apenas a redistribuição do valor gerado nas cadeias de valor, mas, também, a proteção dos dados e dos direitos pessoais. De facto, o risco digital é, ainda, em boa medida, um “buraco negro” que a nova política regulatória ainda não resolveu satisfatoriamente.

Finalmente, a economia das plataformas é uma esperança promissora para a estruturação da economia do quarto setor na sua aceção mais ampla, que inclui o setor público, a economia social e solidária, a economia do conhecimento e da cultura e a economia dos bens comuns colaborativos em sentido largo. A economia das pequenas plataformas estará particularmente vocacionada para a estruturação do quarto setor e, muito em especial, para uma economia dos comuns colaborativos que será o principal pilar deste setor.

II. A geoeconomia do estado-plataforma

Perante a Grande Transformação Digital, não se trata, apenas, de converter um estado-informático num estado-digital, mas de converter uma cultura organizacional hierárquica e vertical, o “estado-silo”, numa cultura organizacional participativa e colaborativa, o “estado-plataforma”. Com efeito, o que aqui sugerimos é uma alteração radical no sistema de valores e na cultura política do estado-administração, sabendo nós que o estado central, o estado local e o estado social são os pilares essenciais do velho estado clientelar do século XX e, desde logo, as principais fontes de alimentação do sistema político-partidário ainda vigente.

A revolução digital põe em causa não apenas a intermediação económica e comercial, mas, a prazo breve, também, a intermediação política e a fonte de legitimação democrática e representativa tal como nós a conhecemos nas sociedades ocidentais, razões mais do que suficientes para que o conservadorismo político-partidário tome as medidas defensivas e cautelares que se justificam nesta conjuntura. Seja como for, a revolução digital é imparável e mudanças profundas ocorrerão nas relações entre a sociedade civil, o estado e as plataformas digitais. Vejamos algumas dessas futuras interações e, mesmo, colisões de interesses.

As tecnologias digitais transformam tudo em produtos e serviços, ou seja, tudo está montado para gerar valor e ser um negócio privado. As plataformas serão o dispositivo tecnológico dessa “atomização-privatização-personalização” das relações no próximo futuro. Não há, por enquanto, pensamento estruturado nem um guião para a ação no setor público, no que diz respeito às novas missões do estado, ao “novo perímetro do estado” e às zonas de interface entre o estado-administração e as plataformas de cidadãos em muitas áreas que relevam da modernização administrativa.

As tecnologias digitais põem a nu o enorme passivo acumulado nos últimos 30 anos no que diz respeito ao envelhecimento da função pública e à falta de renovação dos quadros da administração. Por outro lado, usámos e abusámos de serviços em regime de outsourcing que, gradualmente, desclassificaram os serviços do estado-administração e os perfis profissionais da função pública, ao mesmo tempo que o lobbying corporativo ia capturando e esvaziando muitas funções técnicas do estado.

No quadro de uma política de transformação digital, e como todos sabemos, a política tecnológica está muito associada à inovação incremental e à obsolescência programada, por razões que se prendem com o negócio digital e a satisfação da clientela corporativa que rodeia o estado-administração; tudo somado, é preciso estar avisado para não cometer erros de avaliação em matéria de modernização administrativa.

Na última década Portugal experimentou uma mistura explosiva que juntou o envelhecimento da função pública e o congelamento das carreiras e das remunerações com uma quebra acentuada do investimento público em matéria de transformação digital; este facto, que, só por si, viola princípios e direitos adquiridos dos funcionários públicos, significa, muito provavelmente, que não estarão reunidas as condições políticas e motivacionais para acolher uma nova cultura organizacional que põe em causa a lógica dos direitos adquiridos e a segurança das carreiras da função pública.

Neste momento discute-se, mais uma vez, a política de descentralização. A economia das plataformas abre uma uma via privilegiada de modernização no que diz respeito à política de descentralização de atribuições e competências para os municípios e agrupamentos de freguesias e, de uma maneira geral, à configuração e gestão de serviços públicos. Estão em causa não apenas as missões clássicas do estado-administração como, também, o próprio perímetro da ação administrativa do estado e, ainda, a própria noção de “função pública”, tal como elas são convencionalmente conduzidas e reproduzidas no modelo silo, para além de implicar muito mais investimento na cobertura digital do território.

Um dos aspetos centrais da nova cultura organizacional é o grau de literacia digital da população para lidar com uma nova geração de “serviços ao público”. Não me refiro à manipulação de dispositivos inteligentes, reporto-me a questões de cultura digital que implicam a “coprodução de serviços ao público” em vez de serviços públicos. Esta transição da cultura informática para a cultura digital é plena de consequências sobre o sistema de educação em geral, em especial no que diz respeito à revisão do sistema educativo e formativo.

A economia do estado-plataforma tem um impacto direto na utilização dos dados pessoais, se quiser melhorar a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos-utentes. O acesso aos dados públicos cria uma grande zona de interface com a sociedade civil e abre uma via experimental para testar uma nova administração pública de participação interativa; este é, porventura, o pretexto que faltava para fazer explodir o estado-plataforma, em múltiplos modelos e formatos de plataforma colaborativa e abrir o caminho para novas categorias e tipologias de bens e serviços, como, por exemplo, os “comuns colaborativos” em regime de coprodução com o cidadão-utente.

III. Economia das plataformas e homo digitalis

Numa extremidade, a multidão e a internet. Na outra extremidade, o smartphone e o internauta. No meio, os operadores de telecomunicações, as plataformas digitais e as aplicações informáticas. Estamos a falar da revolução digital na sociedade e na economia e da emergência de um denominado homo digitalis, por enquanto pertencente ainda ao domínio da espécie humana!

Vivemos em plena era das multidões e as plataformas digitais e suas aplicações são, cada vez mais, o novo lugar central da nossa vida coletiva. Na economia das plataformas podemos encontrar uma tipologia muito variada: de busca na internet (Google), de rede social (Facebook), de comércio em linha (Amazon), de aplicações para terminais móveis (App Store), de mobilidade urbana (Uber), de produção de conteúdos (YouTube), de consumo colaborativo (Airbnb), de recrutamento profissional (Linkedin), de trabalho assalariado ou independente (Jobbying), de financiamento participativo (Kickstarter), entre muitas outras em praticamente todos os setores de atividade.

A associação estreita entre a economia das plataformas e o homo digitalis será, seguramente, um dos binómios que suscitará mais interesse e curiosidade no próximo futuro. A economia das plataformas terá um impacto decisivo sobre inúmeros aspetos da nossa vida coletiva:

- Qual é a proveniência das plataformas, globais ou made in?

- Qual é o modelo de negócio que adotam, extrativista ou colaborativo?

- Até onde as plataformas alteram os hábitos e rotinas do consumidor/utente/utilizador?

- Em que medida contribuem para melhorar o grau de literacia e acesso digital?

- Quais os efeitos diretos e indiretos sobre os mercados de trabalho?

- Que perturbações introduzem nas cadeias de valor mais tradicionais?

- Que relações estabelecem com as coletividades territoriais e as economias locais?

- Que impacto têm sobre o rendimento e a fiscalidade locais?

- Qual o modelo de ocupação do território, geram mais dispersão ou aglomeração?

- Que relações com as instituições de ensino superior e o emprego jovem qualificado?

Com esta simples enunciação estamos no coração de uma grande transformação tecnológica, aquela que nos transporta da sociedade industrial para a sociedade digital, aquela que nos conduz da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor-data ou informação. As respostas a estas questões são, só por si, um campo imenso de investigação e uma agenda política fundamental que, em conjunto, nos ajudarão a seguir o rumo mais apropriado até ao futuro próximo.

 Por outro lado, na sociedade digital onde já nos encontramos a nossa pegada digital estará por todo o lado e a nossa vida individual estará praticamente toda digitalizada: nos motores de busca, nas redes sociais, nas centrais de reserva, nas plataformas de compra e venda, de entretenimento, de crowdlearning, crowdsourcing e crowdfunding, de recrutamento e trabalho independente, de aluguer de ativos subutilizados, e em inúmeras aplicações que fomos descarregando em modo mais ou menos descontrolado.

Quer dizer, doravante, na sociedade digital “o produto somos nós”. Somos a mercadoria trocada nos chamados mercados biface. Somos “adquiridos gratuitamente” através dos rastos que deixamos em muitas plataformas (a primeira face do mercado) e somos “vendidos a terceiros”, geralmente empresas e sociedades, depois de devidamente “perfilados”, e mediante o pagamento, por parte dessas empresas e sociedades, de uma comissão à plataforma que faz a respetiva intermediação (a segunda face do mercado). Quer dizer, tudo o que nós dizemos, fazemos, sentimos e experimentamos deixa um rasto e produz informação preciosa com muito sumo para as plataformas de intermediação. Depois de extraído, esse sumo converte-se num perfil personalizado de um consumidor/utente/utilizador e é este perfil personalizado que tem imenso valor para o universo mercantilista do capitalismo digital.

No contexto da sociedade digital e no universo socio-laboral correspondente o homo digitalis apresenta-se em três planos distintos. Como especialista de uma determinada disciplina e trabalhando por conta de outrem numa empresa tecnológica, ele está, digamos, na sociedade pós-industrial. Como free lancer ou trabalhador independente em colaborações muito variadas de crowdsourcing, de economia a pedido e economia partilhada em condições laborais muito diversas, ele está, digamos, na sociedade colaborativa. Finalmente, como utente e utilizador de plataformas e redes sociais onde deixa a sua pegada digital, ele está em plena sociedade do Big Data, praticando aquilo que na literatura se designa genericamente por digital labor.

Nestes três planos o homo digital passa por uma verdadeira transfiguração no que diz respeito à sua condição socio-laboral. Enquanto na sociedade industrial o operário está sindicalmente enquadrado e beneficia de um contrato coletivo de trabalho e de um direito laboral que o protegem das arbitrariedades da entidade patronal, na sociedade digital assistimos a uma fragmentação da condição laboral e da proteção social, digamos, em plena transição do “silo industrial” do capitalismo para o “túnel digital” do capitalismo. Onde ontem se referiam a exploração e alienação do operário industrial, referem-se hoje a alienação e adição do trabalhador digital: sem horário de trabalho, sem contratação coletiva, em regime de prestação de serviço, sem sindicato, sem ordem profissional, sem regime regulamentar e regulatório, em modo de outsourcing, sem seguro coletivo, afinal, em regime precário de pluriatividade e plurirrendimento e, muitas vezes, desligado de uma comunidade verdadeiramente empresarial.

Notas Finais

Na sociedade digital, o trabalho passa a ser, digamos, uma categoria líquida que assume formas e modalidades muito diversas. Isto é, teremos de encontrar um denominador comum ou equivalente geral para o tornar convertível e transferível entre diversas modalidades: trabalho por conta de outrem, trabalho por conta própria, trabalho colaborativo, trabalho comunitário, trabalho voluntário, trabalho on demand, biscastes e macjobs, trabalhos realizados aqui e no estrangeiro, etc.

Naturalmente, uma boa parte do que aqui se diz fica inteiramente dependente da consistência das respostas às questões relativas às plataformas digitais tal como as enunciámos anteriormente. Para memória futura e em jeito de ilustração refiram-se as relações entre as plataformas digitais e os ecossistemas locais formadas pelas coletividades, as economias de rede locais e as instituições de ensino superior regionais.

Neste relacionamento triangular, um primeiro aspeto diz respeito à relação entre fratura digital e cobertura digital, o que levanta a questão da infraestruturação do território sem a qual o acesso fica bastante prejudicado. Um segundo aspeto diz respeito às competências digitais e ao grau de literacia digital de toda a população, o que, só por si, pode determinar um questionamento radical dos modelos de ensino, educação e formação profissional. Um terceiro aspeto diz respeito ao acesso aos dados existentes, o que levanta questões fundamentais como a regulação da privacidade, mas, também, a modernização digital da administração. Um último aspeto, porventura o mais decisivo, diz respeito aos incentivos para fazer emergir plataformas digitais adequadas às necessidades das economias locais e regionais, o que levanta a questão crucial dos modelos de negócio das plataformas.

Como dissemos, a geoeconomia das plataformas promove uma cura de emagrecimento nas intermediações, sejam elas económicas, financeiras, institucionais ou associativas e só por essa razão já teria valido a pena promover a transformação digital das organizações privadas e públicas. Há, todavia, um longo caminho a percorrer e num país como Portugal, onde geralmente se confunde uma política pública com a publicação de um diploma legal, não é tarefa fácil montar um estaleiro de pequenos núcleos inovadores no interior da administração pública em estreita ligação com centros de investigação e outras startup e, a partir daí, gerar um movimento de reforma da nossa administração pública. No nosso caso, o principal estrangulamento ao patrocínio adequado deste movimento é o “modelo silo” completamente ultrapassado das nossas principais instituições, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão corporativa.

Uma palavra final para a nova geografia económica das plataformas digitais. Eis os tópicos principais de um programa e uma agenda para o futuro próximo: fratura digital e cobertura digital (1), polarização digital e novas assimetrias territoriais (2), plataformas e modelos de mobilidade e ocupação do território (3) , geoeconomia das plataformas e rearranjo socioinstitucional (4), plataformas, serviços de proximidade e economias de aglomeração (5), plataformas, literacia, competências digitais e modelos de ensino-formação (6), finalmente, plataformas, coletividades territoriais e modelos de negócio made in (7).

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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