O coração ainda bate. O sino

Daquela vez, a notícia da morte chegou sem que o sino a anunciasse. Tinha sido um homem que não vivendo casado com a mulher que amava (vamos pensar que se amavam já que viviam juntos) não estava ao abrigo do que a igreja exigia para os seus fiéis. Eram amantes, amigados, amancebados, o sino não tocaria por eles.

No adro da igreja. Agora que me lembro, o adro da igreja era sempre o lugar que servia de referência para quem ia ou vinha. Ficava ali, naquele intermédio a meio caminho de qualquer coisa. Em redor da igreja havia um chão feito de terra granulada cor de barro. E nós íamos à catequese e, desconfio, tentávamos uma integração que não era sequer questionável. Muitos de nós ainda mimetizam acções sem as discutir. Porque os pais faziam, porque está na fotografia dos outros, na casa da maioria. Nós, por medo, engrossamos o grupo e muitas vezes só depois nos permitimos discordar.

Havia muitas coisas de que eu não gostava na forma como a igreja se organizava: todos os verões vinham em grande número os endinheirados da cidade com segunda casa ali. Ora aquela tinha-se tornado na minha única casa e eu reclamava o território, embora a minha voz não se ouvisse em lugar nenhum. Sabia lá eu que podíamos ter voz própria e que ela levantada se pode ouvir longe.

É possível que quem ali morasse as estações todas, chamasse aos que vinham, “os fidalgos”. Divertia-me a palavra. Às vezes também me podiam dizer na escola que eu tinha um gosto fidalgo mas eu vivia ali…

Voltemos então à igreja no seu adro de terra granulada cor de ferrugem. Nós, os miúdos, éramos tratados com muita indiferença por quem ali mandava, mas a dada altura apercebi-me que os que chegavam, para desfrutar da segunda casa, eram recebidos de forma calorosa. Beijados até. Sabem essa coisa estranha de tratarmos melhor os de fora do que os que nos rodeiam o tempo todo e nos veem mal e bem, mal e bem, mas para esses guardamos o nosso avesso e para os de fora, o melhor fato? Era isso que acontecia no adro da igreja.

Comecei a perceber que havia diferença na forma como as crianças eram tratadas e então começaram a surgir as perguntas na minha cabeça. Eu que ainda não tinha permissão para usar calças comecei a questionar o mundo quando vi crianças como eu a serem tratadas de forma diferente. Nessa altura também devo ter perguntado ao meu pai por que razão não podia eu usar calças. A minha revolução começou aí, entre beijos que não me foram dados e calças por usar. Tudo aconteceu rapidamente na verdade. E pouco depois estava eu de calças de bombazine a fazer as primeiras perguntas sobre fé e religião. Curiosamente, 40 anos depois, as perguntas são as mesmas.

Há um momento muito pesado, soou-me pesado na altura e o eco dessa memória continua a ser fúnebre e solitário: um dia chegou a notícia da morte de alguém. Num meio pequeno contam-se mais facilmente as mortes e os nascimentos, os casamentos e os divórcios. Talvez se escondam de qualquer forma as alegrias e tristezas. Essas permanecem camufladas dentro de nós…

A notícia da morte chegou dada pela minha mãe, e eu, criança agora já com voz, perguntei: por que motivo não toca o sino? Os sinos eram o nosso obituário sonoro. Estremecíamos quando o sino tocava daquela maneira e a minha mãe perguntava: “quem terá morrido?”. Eu achava, na minha ilusória invencibilidade, que só os velhos podiam morrer, mas estremecia de qualquer maneira.

Daquela vez, a notícia da morte chegou sem que o sino a anunciasse. Tinha sido um homem que não vivendo casado com a mulher que amava (vamos pensar que se amavam já que viviam juntos) não estava ao abrigo do que a igreja exigia para os seus fiéis. Eram amantes, amigados, amancebados, o sino não tocaria por eles.

Deve ter sido nesse momento, já de calças, que descobri que o mundo não era justo, que havia muita coisa por mudar e que eu, tendo voz, podia fazer mais perguntas, as perguntas que trazem mudança.

Quando ouço um sino ao longe, lembro-me desse homem sem nome que morreu.

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