Afinal, de quem é “enxada”?

Ali se abateram ignobilmente mais de 500 animais, para ali planeia-se uma central fotovoltaica com 775 hectares com consequente sacrifício de vegetação, em área de Reserva Ecológica Nacional. A herdade da Torre Bela, no concelho da Azambuja, ocupada em 1975 por trabalhadores rurais da região, é desde há muito o foco de interrogações, controvérsias e suspeições fundadas. Há pouco tempo o hacker Rui Pinto perguntava se a herdade não pertenceria à família Dos Santos. Também eu, que ali pretendi filmar em 2009 e mais recentemente em 2019, me questiono sobre o seu estatuto.

Ai Torre Bela! Torre Bela! As fotografias que documentam o abate de mais de 500 animais, entre veados e javalis, incendiaram as redes sociais e tornaram-se o foco de acesas críticas por parte de entidades municipais e do próprio Ministério do Ambiente. O Governo revogou a licença de caça à empresa que gere a Torre Bela e apresentou queixa ao Ministério Público relativa ao massacre. Entretanto, a Câmara Municipal da Azambuja anulou a declaração de interesse público municipal para a mega central fotovoltaica que os proprietários ali pretendem instalar.

Antes desta matança e da questão da central fotovoltaica, uma troca de tweets entre o responsável pelo Luanda Leaks, Rui Pinto, e Isabel dos Santos veio colocar de novo a atenção mediática sobre a Torre Bela. Perguntava Rui Pinto se a família Dos Santos seria “a real proprietária de uma das maiores propriedades muradas da Europa”. Isabel dos Santos contrapunha num tweet: “Engraçado Rui Pinto estar a fazer estas perguntas sobre ‘torre bela’.” E acrescentava que, “pelos vistos, é um mero curioso que vive de fofocas”.

Não seria preciso Rui Pinto ser um hacker para descobrir algo que desde há algum tempo anda nas bocas de muita gente: os atuais proprietários da Torre Bela seriam “testas de ferro” da família de José Eduardo dos Santos. Comecei a ouvir este rumor assim que iniciei a investigação para o meu filme Linha Vermelha (2011), por volta de 2007. Era algo que circulava não só nas aldeias próximas da herdade, como em Lisboa e mesmo, segundo me disseram, em Luanda.

O boato – a ser boato – é bastante irónico: Torre Bela, onde funcionara uma cooperativa de ideário coletivo, pertencia agora a uma família que apregoara e vivera, em tempos idos, o mesmo ideal de esquerda coletiva e que, paradoxalmente, a comprou segundo os trâmites de uma alta operação capitalista dissimulada.

Ora, os proprietários da Torre Bela têm nome e têm rostos. Trata-se da Sociedade Agrícola da Quinta do Convento da Visitação, que detém também uma quinta com o mesmo nome na zona de Alenquer. Cristina Albuquerque, a proprietária, foi com quem me reuni eu e outros elementos da produtora Terratreme, para pedir permissão para filmar na Torre Bela para Linha Vermelha (2011). Depois de alguns encontros com a proprietária no seu escritório nas Torres das Amoreiras, essa autorização foi-nos recusada liminarmente num lacónico email, não sem antes nos ter sido solicitado um pagamento pelas rodagens. Ora, num documentário como aquele a que nos propúnhamos, não é habitual remunerar o aluguer de espaços como é comum nos filmes de ficção, pois seria limitativo e eticamente questionável.

Já mais recentemente pedi de novo autorização para filmar na Torre Bela, desta vez para Prazer Camaradas (2019), filme que estreou na edição 2019 do Festival de Locarno. A resposta foi a mesma e disso não passou. Sei que um pedido semelhante da SIC para rodagem de uma rubrica a exibir no Jornal de Domingo teve o mesmo destino que os meus pedidos: interdição absoluta. Os planos da equipa de televisão eram na altura filmar com drones e recontextualizar a história da quinta.

A apetência por filmar e recordar a Torre Bela tem uma razão de ser: a sua memória. Esta foi construída, em parte, pelo famigerado filme Torre Bela, de Thomas Harlan rodado em 1975 e exibido pela primeira vez em 1977. Tive oportunidade de revisitar este belo e complexo documento histórico em Linha Vermelha, mas sem poder filmar a quinta na atualidade.

Este filme tem tal força documental e é de tal forma conhecido que jovens de Manique do Intendente, uma das aldeias adjacentes à Torre Bela, sabem de cor, como tive oportunidade de observar, a famosa cena de discussão entre dois cooperadores sobre a quem pertenceria uma “enxada”: se à cooperativa como um todo, se ao individuo atarantado com o novo regime revolucionário de propriedade. O filme de Harlan é, pois, o grande responsável pela memória aurática da herdade. Mas existem pelo menos três outros documentos sobre a experiência aí vivida em comunidade: o documentário Torre Bela, de Luis Galvão Telles, o livro do francês Francis Pisani, Torre Bela – todos temos direito a ter uma vida e o da alemã Helga Novak, Die Landnahme von Torre Bela [A Ocupação da Torre Bela]. Estes últimos registam as vivências dos seus autores na cooperativa e refletem sobre a complexidade de uma experiência coletiva no Portugal de 75.

Esta ímpar riqueza documental faz da herdade Torre Bela um espaço simbólico especial. Barrar-lhe o acesso hoje é ignorar o quanto ela é um lugar de memória fundada na experiência vivida de muitos ex-cooperadores e na sua história narrada e construída por muitos documentos.

Fechar a Torre Bela à curiosidade de jornalistas, realizadores, escritores, alunos, etc., é beneficiar de forma autoritária da prerrogativa da propriedade privada e esquecer que um lugar assim é objecto de uma memória coletiva, que tem uma face pública. Por isso, não deixa de ser irónico como no site http://torrebela.pAfinalt/, da sociedade que a gere, estejam incrustados os filmes de Harlan e Galvão Telles, com o logotipo da empresa abusivamente inserido na imagem, ignorando tudo quanto seja propriedade autoral sobre as películas. Pertencerá afinal a herdade aos Dos Santos ou a qualquer outro dono angolano, não sendo esta última hipótese nada despicienda? Não temos como saber, mas os cadeados postos sobre os seus portões e o manto de secretismo que a Sociedade Agrícola da Quinta da Visitação sobre ela mantém só mais espicaça a curiosidade e vem, afinal, ao encontro do que é também central: a propriedade privada, quando incide sobre algo que é um espaço de memória coletivo, deve ser questionada e relativizada.

Até que ponto não se deve pedir aos proprietários a consciência da coisa pública sobre algo que detêm com disciplina férrea? Se os proprietários de um lugar com memória não partilham essa sensibilidade, não deveremos nós, organizados em comunidade, exigir essa consciencialização? Não deveremos nós solicitar a abertura dos portões em nome de algo que ultrapassa a mera gestão privada da quinta que é a sua memória? Passados tantos anos, a Torre Bela, mais do que nunca envolta em várias polémicas, continua no centro das discussões sobre a propriedade no labirinto da nossa história mais recente: afinal, de quem é a “enxada”?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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