Remendos de hipocrisia

Uma cidadania responsável não é a que reclama vingança, mas a que exige a prevenção das situações. É a que questiona os processos, as qualificações, a formação e a supervisão dos profissionais, das mais variadas áreas, especialmente daquelas cujas condutas devem ser legal, cívica e moralmente irrepreensíveis.

Com mais de meio século que levo vivido, não deixa de me conseguir surpreender essa facilidade com que, ao surgir uma situação grave (ou, com maior propriedade, ao publicitar-se essa situação), se retiram da cartola, com uma torpeza de saltimbanco de feira, soluções apressadas, impensadas e de improvisado amadorismo, que na maior parte das vezes só não vêm a revelar-se totalmente inexequíveis, pela simples razão de que nunca se chega, sequer, a tentar executá-las.

Poderiam, se não fosse a evidente má-fé com que são usadas, ser classificadas como “declarações de intenções”, mas com a sucessão de episódios com que, em diferentes momentos, temos sido presenteados, só podem sugerir embustes ou engodos, destinados a calar uma opinião pública cuja indignação é, de facto, branda, serena e volátil, traduzida nuns virtuais gritos irados, emitidos via redes sociais; nuns, igualmente virtuais, vitupérios, arremetidos pelas mesmíssimas vias; ou num ou outro comentário crítico, também estes brandos, porque, afinal, o país é pequeno, toda a gente se conhece, a rede de interesses é apertada e dominada pela lógica do “se hoje és tu, amanhã posso ser eu...”.

Mas tomando como certo que esta indignação suave e mansa não é algo inscrito no ADN luso, e que a aprendida submissão, ditada pelo fascismo, não poderá persistir ad aeternum como justificativa, as razões têm de ser buscadas num sistema de ensino que não promove o questionamento, a reflexão e os conceitos de bem comum e de interesse geral e numa comunicação social que continua amordaçada, já não pelo lápis azul da censura pidesca (que esse, com inteligência, ainda conseguia ser iludido), mas por outras censuras mais poderosas e, essas sim, iniludíveis e incontornáveis, geradas pelo medo da precariedade do emprego e pelas falhas do sistema de ensino, atrás referidas.

Fazem-se, nesta semana, manchetes a propósito de um vergonhoso e funesto episódio, decorrente da acção de agentes de um órgão de polícia criminal, que resultou na morte de um cidadão estrangeiro, no aeroporto da capital de um país que, em exercícios frequentes de autoelogio, gosta de se afirmar como modelar.

Todavia, esta morte, isto é, este homicídio, ocorreu há nove meses e, para além de umas notícias breves na imprensa, passou relativamente despercebido num país distraído na sua indignação com a brutalidade policial nos EUA, e entretido em discussões e manifestações acerca do nosso racismo ou da ausência dele.

E agora, nove meses depois, por acção da justiça, este homicídio entra na discussão política, institucional e social.

E desencadeia as tão previsíveis tentativas atabalhoadas de remendar o que não tem remédio –​ porque se nenhuma morte tem remédio, as que assim sucedem, brutais na sua cobardia de assimetria de forças, menos o têm ainda, seja aqui, seja do outro lado do Atlântico, chame-se a vítima Ihor ou George Floyd.

As tentativas atabalhoadas que sugeriram a instalação de um botão de pânico, solução correspondente a um encolher de ombros resignado perante a probabilidade de ocorrência de novas situações, num claro e generalizado desrespeito quer pelos profissionais (sobre os quais é lançado um anátema de recorrente abuso e violência), quer pelos cidadãos que, por uma ou outra razão, se vejam confrontados com a necessidade de interagir com esses profissionais.

Quando o anúncio da instalação do dito botão não surtiu o expectável (para quem?) efeito tranquilizador, foi necessário endurecer as medidas: e nada melhor que a demissão da directora do serviço responsável pelo crime.

E agora, entre as exigências de saída do ministro (que deveria ter saído no momento dos factos) e as propostas de extinção do serviço, berram-se alternativas para todos os gostos.

Esquecemo-nos, todavia, que uma cidadania responsável não é a que reclama vingança (mesmo que mascarada de reparação), mas a que exige a prevenção das situações. É a que questiona os processos, as qualificações, a formação e a supervisão dos profissionais, das mais variadas áreas, especialmente daquelas cujas condutas devem ser legal, cívica e moralmente irrepreensíveis.

A cidadania responsável é a que “cobra” ao Estado a transparência e a justiça, sem compadrios, favores ou “jeitinhos”. Os compadrios, favores e jeitinhos que se pagam com o silêncio submisso, atento e venerando.

E de vez em quando, se alguém, por mero engano, quebrar esta espécie de instituída omertà, acena-se ao povo com a musculada exemplaridade de uma demissão, ou com a marcial ameaça de extinção do serviço.

Na aparência muda-se tudo, para que tudo possa permanecer igual, porque o país é pequeno, toda a gente se conhece e, afinal, ninguém está livre de, num destes dias, precisar de “um jeitinho”. E como escrevi por aqui um dia, a hipocrisia é mesmo um vírus. E para esse não se antevê vacina.

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