E a hipocrisia? Também é um vírus?

Hoje é o surto de covid-19 e as promessas de mudança. Ontem foi a brutalidade policial e as promessas de mudança. Amanhã será o esquecimento e a certeza de que tudo continuará igual. Hipocritamente igual.

Ciclicamente – sempre pelas piores razões – recordamo-nos que há quem viva, mesmo aqui ao lado, em condições infra-humanas, em barracas térreas ou de vários andares, sem água nem luz, sem arruamentos, sem saneamento, com ruas que compõem labirínticos casbás e que, no inverno, se transformam em pântanos de lama.

Recordamo-nos que existem o Bairro da Jamaica, o Bairro da Quinta da Fonte, o Bairro da Torre, a Cova da Moura ou o Segundo Torrão (e isto limitando-me a alguns exemplos, na região de Lisboa).

Bairros de ruas onde as mulheres cozinham, lavam e estendem roupa, ou dão banho aos filhos, e que são percorridas por jovens “vigias” que, a troco de pagamento, avisam os traficantes da aproximação da polícia.

Bairros feitos de imigrantes e de migrantes (de primeira, segunda, terceira e até quarta geração), dominados por gangs, em que os dias são vividos no fio da navalha, quer para os que procuram a paz e a tranquilidade, depois de jornadas de trabalho que começam de madrugada e acabam quando a noite já vai alta, quer para os que vivem em fuga: da polícia ou de um qualquer vizinho, cuja arma pode disparar-se acidentalmente; cujo bastão pode, inexplicavelmente, ganhar vida e erguer-se no ar; ou cuja navalha pode, num golpe de azar, esquartejar-lhe a vida.

Bairros que ficam longe de tudo, ainda que estejam tão perto: ficam longe de uma cscola, que não percebem, nem os percebe, na linguagem, na língua, nas referências. Que ficam longe de um Emprego, que não passa de mal-pago, duro e precário. Que ficam longe das políticas, lembrados que são, apenas, em anos eleitorais, quando desfiles de senhoras e senhores bem-intencionados, percorrem as suas ruas, num espanto de Zoológico, e lhes prometem que “tudo irá mudar”, apressando-se, depois, a caminho dos carros que os levarão a outro bairro semelhante, para novas promessas, e aproveitando a viagem para se desinfectarem com toalhetes refrescantes.

Mas talvez as toalhetes, com que se desinfectam as mãos, tenham também o efeito de apagar a memória e de apagar as palavras, uma vez que estes bairros existem há quarenta anos e neles se engendraram, já, filhos, netos e bisnetos, ao mesmo tempo que se receberam os “patrícios” chegados de longe, porque, afinal, quando se vive na pobreza há sempre lugar para mais um, e onde cabem quatro, cabem seis, ou sete, ou oito, e quem conhece a dureza da vida sabe com que facilidade se podem encolher os corpos e os estômagos.

Então, entre filhos, netos e recém-chegados que foram ficando, estes bairros cresceram, à vista de todos nós e por todos nós ignorados, excepto quando – e, repito, sempre pelas piores razões – se tornam notícia por uns dias, até caírem, de novo, no esquecimento.

E, enquanto são notícia, o espaço público multiplica-se em discursos: pios e piedosos uns, surpreendidos e consternados outros, indignados e revoltados, outros ainda. Partilham, todavia, duas características: a hipocrisia e o preconceito.

Relativamente a este último, e porque os extremos muitas vezes se tocam, o preconceito pode funcionar como uma faca de dois gumes e alimenta, com igual fervor, a retórica da intolerância e a retórica da solidariedade: aquela que cola o rótulo de marginais e de “inimigos públicos” a todos os habitantes destes bairros; bem como aquela que os remete, a todos, para a categoria dos “excluídos”, esquecendo que a exclusão, quer em termos conceptuais, quer em termos factuais, constitui um catálogo complexo, diversificado e multiforme.

Quanto à hipocrisia, e neste tempo em que tanto se fala de contágios, teríamos aqui um interessante estudo de caso epidemiológico, dada a transversalidade e propagação do fenómeno, que afecta desde as empresas e particulares, que lucram com o trabalho mal-pago de quem habita nestes bairros, aos projectos sociais que, pretextando iniciativas empoderadoras, recebem fundos que, muitas vezes, apenas servem para empoderar as contabilidades próprias.

Que contamina desde as forças políticas, que usam como arma de arremesso, contra os opositores, as condições de vida nestes locais, ao sistema de Justiça, que entre os seus habitantes consegue mostrar uma eficiência musculada, de que parece carecer quando os visados têm mais poder, dinheiro ou conhecimento(s).

Que afecta desde a comunicação social, que numa espécie de “toca e foge”, fruto da pressão do tempo e dos tempos, se amantiza com o bairro, numa relação fortuita e descartável, ao sistema de Educação, que se limita a tentar estabelecer, com estes jovens, uma espécie de “pacto de não-agressão”.

Hoje é o surto de covid-19 e as promessas de mudança. Ontem foi a brutalidade policial e as promessas de mudança. Amanhã será o esquecimento e a certeza de que tudo continuará igual. Hipocritamente igual.

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