O coração ainda bate. O fato

Os homens mais perto da natureza fascinam-me tanto como aqueles que se rodearam de livros para justificar o olhar em volta: há quem não precise de muito para levantar a cabeça e encolher os ombros enquanto constata…

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Reuters/MIKE BLAKE

Lembro-me dele muito palrador misturando a religião com a filosofia. Era fervoroso na sua fé e os lábios enchiam-se de saliva para falar do Deus a quem sempre prestara contas. Às vezes a saliva tem vogais e credos que os outros não apanham. As palavras sobram-nos.

A filosofia era uma soma de experiências vividas: não tinha lido Heidegger nem tão pouco sabia que antes dele morrera um homem português que tinha passado muito tempo a pensar o país. Pensamos melhor quando estamos de fora? Até do avesso. Às avessas.

Ele não vivia a pensar. Acontecia-lhe pensar quando revolvia a terra, via a lua, a chuva que nunca vinha, o frio que tardava. Os homens mais perto da natureza fascinam-me tanto como aqueles que se rodearam de livros para justificar o olhar em volta: há quem não precise de muito para levantar a cabeça e encolher os ombros enquanto constata…

Com que idade começamos a pensar na roupa que um dia levaremos quando nos despedirmos da vida como a conhecemos? Não sei. Se calhar há quem nunca pense, mas ele tinha pensado. Levantava-se muito cedo, fazia as suas orações, a saliva escondia as suas preces e, sem que ninguém se apercebesse, ia ao armário e olhava para o fato castanho que só tinha usado no casamento da filha e depois da neta. Duas vezes, nem uma lavagem a seco, nem uma vogal a mais tinha escorrido para a lapela. Estava pronto o fato. Um dia celebraria o fim da festa da vida, a despedida que não pedimos mas que alguns ternamente aceitam.

Antes das seis despertava com uma missão: era só perceber que continuava vivo. Beliscava-se por ter acordado, pela sorte de continuar aqui a ver a terra sem chuva, os pássaros alinhados no poste de cimento triste, as dálias agora fortalecidas, os crisântemos que se inclinavam para a morte. Via tudo com tanto prazer enquanto dizia baixinho: “o Senhor é meu pastor, nada me faltará…”.

Pelas seis foi caminhar. O musgo trepava as paredes vizinhas e o silêncio da manhã fazia com que se lembrasse com uma invulgar nitidez dos momentos em que se aproximou de facto da felicidade. É possível que nesses momentos estivesse com o fato castanho, aquele que continuava no armário para o dia em que já não se poderia beliscar.

Sentiu uma tontura. Caiu do bolso o telemóvel e um relógio com a pulseira puída. Para que precisamos das horas quando deixamos de ter tempo para viver?

A seguir foi tudo muito rápido: notarem a falta do telefonema da manhã, levarem-no para o hospital, ser mais um entre os números que entram com “prognóstico reservado” e sobre os quais se inclinam os crisântemos e as dálias estremecem.

Acordou devagar para um mundo onde não sabia sequer se valeria a pena beliscar-se. Estava despido com uma bata que era uma pena tão leve como aquelas que juntava em bouquet quando os pássaros levantavam voo e deixavam (ele achava que era para ele) um rasto da passagem por ali.

Não creio que o breve tempo no hospital lhe tenha permitido grandes filosofias. As máquinas imitam o som da vida mas facilmente se desligam para a morte. Ele não conseguia pensar. Sentiu a falta da família que foi impedida de o visitar, rezou para que as horas fossem curtas e pensou no fato castanho, quase imaculado, guardado há anos à espera daquele momento.

A mulher nunca recebeu o telefonema a pedir o fato. Ele, tal como muitos nesta hora indigna da nossa morte, desceu à terra despido, embrulhado num plástico.

Na hora da sua morte, os pássaros voaram em bando e um manto de penas ficou sepultado junto ao lugar onde sempre passeara.

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