A mercearia mais antiga de Gaia resiste a estes dias com humor

A Favorita de Gaia conta 111 anos, mas mantém a frescura e formosura dos seus produtos. São eles, a par do refinado sentido de humor dos cartazes publicitários, que atraem fregueses de toda a parte e contribuem para a sobrevivência deste negócio tradicional.

comercio-tradicional,mercearia,vila-nova-gaia,comercio,alimentacao,local,
Fotogaleria
Nelson Garrido
comercio-tradicional,mercearia,vila-nova-gaia,comercio,alimentacao,local,
Fotogaleria
Nelson Garrido
comercio-tradicional,mercearia,vila-nova-gaia,comercio,alimentacao,local,
Fotogaleria
Nelson Garrido
comercio-tradicional,mercearia,vila-nova-gaia,comercio,alimentacao,local,
Fotogaleria
Nelson Garrido
Bomboneria
Fotogaleria
Nelson Garrido
Supermercado
Fotogaleria
Nelson Garrido
Bomboneria
Fotogaleria
Nelson Garrido
comercio-tradicional,mercearia,vila-nova-gaia,comercio,alimentacao,local,
Fotogaleria
Nelson Garrido

Dificilmente haverá um rosto tristonho e carregado que não mude de expressão, mesmo que por instantes, ao aproximar-se da montra d’A Favorita de Gaia, mercearia fundada em 1909 em frente à Igreja de S. Cristóvão de Mafamude, em Vila Nova de Gaia. Ainda hoje, muitos atrasam o passo para admirar e fotografar a superfície envidraçada quando dão com os olhos nos peculiares cartazes publicitários, onde se podem ler frases como “Estimado cliente, por este preço não deixe os porcos morrer à fome”, “Estimado amigo, por favor não me assalte, não me roube, somos colegas. Eu ando ao mesmo. Obrigado” ou “Promoção: nozes de Vinhais, são fracas, podres e caras”. Todas saídas da cabeça de Bernardino Gonçalves, o carismático dono da mercearia que morreu em Outubro aos 63 anos.

“Muita gente entrava para agradecer ao meu pai por lhes dar ânimo e acabava por comprar”, recorda Bruno, que está a dar continuidade ao negócio com a mãe, Lurdes, e o irmão, Luís Miguel. A responsabilidade é grande, já que este era o projecto de vida de Bernardino, a “menina dos olhos dele”. Começou a trabalhar na mercearia com 12 anos, como empregado de loja, e ali ficou durante mais de 50, conquistando fregueses de toda a parte com a constante boa-disposição, o apurado sentido de humor, a gentileza do atendimento e, claro, a qualidade dos artigos, vindos directamente da terra.

Para o merceeiro, A Favorita de Gaia “não era só um trabalho ou uma loja”. “Era [uma forma de estar presente] na comunidade de Mafamude”, sublinha Luís Miguel Gonçalves sobre a “casa do povo” que o pai construiu. “Acho que ele conseguiu cumprir esse propósito”. O mesmo dirão as crianças de outros tempos, hoje adultos com 30 e 40 anos, que passavam pela loja à vinda da escola e tiravam sorrateiramente uma peça de fruta da caixa que estava à porta. “Lembro-me de ouvir muita gente dizer ‘Roubei tanta fruta nessa loja’, e isso mostra que o meu pai deixou muitas memórias às pessoas”, observa Bruno Gonçalves.

Luís Miguel conta que “os miúdos ali da rua” sentiram particularmente a perda de Bernardino, porque perderam um dos protagonistas da sua infância. “Eram os que vinham com o papel buscar alguma coisa” e nunca voltavam a casa sem um punhado de rebuçados. Boa parte desses “filhos que foram acarinhados” continua a ser cliente e já traz a sua própria família. A par deles, são as pessoas mais velhas da zona, muitas delas que cresceram com Bernardino, que acorrem fielmente à Favorita. 

Fora isso, pára ali quem se esqueceu de alguma coisa ao fazer as compras maiores. “As pessoas mais novas dificilmente vêm aqui, porque é mais cómodo ir a um centro comercial”, comenta Bruno, que aponta o estacionamento como um dos entraves principais à proliferação do pequeno comércio face à concorrência das grandes superfícies. “As pessoas podem gostar de vir aqui, mas se se arriscam a ser multadas ou têm de andar à chuva, preferem um hipermercado”. 

Apesar das dificuldades que o comércio tradicional enfrenta, a mercearia vai andando entre os pingos da chuva graças à localização privilegiada. Está numa zona habitacional e populosa de Mafamude, cujo movimento se deve sobretudo ao entorno da igreja e da escola. “O sábado é um dia muito corrido com a catequese, os escuteiros ou as missas”, exemplifica Luís Miguel. A paragem forçada destas actividades devido à pandemia ajuda a explicar a maior quebra na facturação da mercearia. No feriado de 1 de Novembro, um dos dias mais movimentados do ano, as vendas terão derrapado cerca de 80%.

À semelhança de outras lojas tradicionais, A Favorita de Gaia sofreu uma quebra significativa nos lucros nos últimos meses, sobretudo “nos dias de recolher obrigatório”. Apesar disso, “vai-se facturando, muito ou pouco”. Mas este é um problema colectivo, opina Luís Miguel, porque “a este ritmo, o encerramento pode tocar a todos”.

Para já, o optimismo que está na essência da casa mantém-se, a par da qualidade e frescura dos produtos, elemento diferenciador face à oferta da grande concorrência. Vendem-se, sobretudo, legumes e fruta da época “vindos do produtor e não de uma produção em série”, nota Bruno. É a frescura e sabor dos produtos, assim como a proximidade do atendimento, que traz Josefa Castanheira à mercearia. Mora em Oliveira do Douro, mas compra n’A Favorita sempre que tem “um bocadinho para passar” ali. “Já conhecia o pai deles e também venho para os ajudar”, revela ao PÚBLICO.

Hoje leva bacalhau, frutos secos e legumes para compor a mesa de Natal, como muitos fregueses que têm comprado ultimamente. Mas o espírito de entreajuda e solidariedade da época não se esgota aqui. “Há, claramente, uma maior vontade de apoiar os pequenos negócios”, observa Luís Miguel. Em 2017, o município de Gaia atribuiu a Medalha de Mérito Empresarial à mercearia, reconhecendo-a como património da cidade. Recentemente, começou-se a ensaiar um novo serviço de entregas on-line, desenhado para os nossos tempos. Mas, por mais mudanças que possam vir, nunca faltará alegria – produto em stock todo o ano.

Sugerir correcção
Comentar