Barroso, Trás-os-Montes: a beleza e a força de um diamante em bruto

O luso-brasileiro André Vieira viajou até ao interior do Barroso, em Trás-os-Montes, e trouxe o retrato do diamante em bruto que conquistou o The New York Times. Na região que foi classificada Património Agrícola Mundial, em 2018, “quem dita o ritmo da vida é a natureza”, disse o fotógrafo ao P3, em entrevista.

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©André Vieira

Cansado do Rio de Janeiro, da sua intensidade, violência e problemas crónicos, o jornalista e fotógrafo André Vieira decidiu, em finais de 2017, trocar a cidade onde nasceu e cresceu por Portugal. Não foi por acaso. Os seus bisavôs eram portugueses. Em busca de uma vida melhor, emigraram, durante a primeira metade do século XX, da Póvoa de Lanhoso para o Brasil. “Ouvi falar muitas vezes das minhas origens, mas confesso que não sentia uma ligação muito profunda”, disse ao P3, através de videoconferência. “Conhecia as histórias de pobreza, de dureza da região, da emigração, mas era um conhecimento superficial.”

Quando, em Abril de 2018, o Barroso foi classificado património agrícola mundial, André Vieira tomou a decisão de, um dia, visitar Trás-os Montes. “Sempre me interessei por questões relacionadas com sustentabilidade, por tradições agrícolas. Sou um apaixonado da gastronomia, dos produtos regionais, considero-os de uma enorme riqueza.” Esse dia chegou em Fevereiro de 2019. A realidade que encontrou nas aldeias de Vilarinho Seco e Covas do Barroso, que visitou consistentemente a cada dois meses de 2019, foi tão marcante que dessas visitas nasceu o projecto fotográfico recentemente publicado no jornal The New York Times.

A praça principal de Vilarinho Seco, uma das aldeias mais antigas da região do Barroso. Vilarinho Seco é considerada um dos exemplares mais bem preservados da arquitectura tradicional da região. ©André Vieira
Elias Coelho (à direita), conversa com um familiar de um vizinho e com o seu filho nas ruas de Vilarinho Seco, enquanto um grupo de bois regressa dos campos. ©André Vieira
Quatro famílias de Vilarinho Seco unem esforços - mão de obra e equipamento - para plantar batatas nos primeiros dias de Primavera, uma prática comum na região do Barroso ©André Vieira
Os terrenos agrícolas são pequenos e estão dispersos em redor da aldeia. A grande maioria já produz alimentos há séculos e são mantidos férteis usando técnicas de pousio. Servem, durante o descanso da terra, de prados para o gado. ©André Vieira
Procissão religiosa prepara-se para sair da capela de Vilarinho Seco ©André Vieira
Moradores de Vilarinho Seco cantam e bebem após a cerimónia religiosa. As celebrações católica marcam o ritmo dos ciclos agrícolas. Muitas tradições católicas antigas são misturadas com rituais de origens ancestrais. ©André Vieira
Elias Coelho (à esquerda) serve pão caseiro à família e amugos, após terem passado a manhã na matança do porco, no exterior da casa, em Vilarinho Seco. ©André Vieira
Hora da refeição após a matança do porco na casa de Paulo Pires, em Covas do Barroso. Todos os anos, no início do inverno, os residentes das aldeias do Barroso matam os porcos para fazer os enchidos que irão alimentá-los ao longo do ano. ©André Vieira
Bandeira portuguesa numa colina com vista sobre a aldeia de Covas do Barroso,Bandeira portuguesa numa colina com vista sobre a aldeia de Covas do Barroso ©André Vieira,©André Vieira
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A praça principal de Vilarinho Seco, uma das aldeias mais antigas da região do Barroso. Vilarinho Seco é considerada um dos exemplares mais bem preservados da arquitectura tradicional da região. ©André Vieira

“Nestes lugares, é a natureza que dita o ritmo da vida”, afirma o fotógrafo luso-brasileiro. “A força humana não é suficiente para controlá-la e, nesse sentido, ou te adaptas ou morres.” E os habitantes da região – cujos antepassados remontam à era de ocupação celta – adaptaram-se ao isolamento, ao clima e orografia hostis, formando laços de cooperação que se mantêm até aos dias de hoje. Essas práticas, que vão desde a vezeira – sistema em que cada membro da comunidade cuida, à vez, do gado de todos – até à entreajuda na forma tradicional de trabalhar as terras, estão na base da classificação do Barroso como património agrícola mundial. “Claro que existem rivalidades dentro da mesma aldeia”, refere André Vieira. “Mesmo tratando-se de aldeias com muito poucos habitantes. Mas, no fundo, são como uma grande família, ou seja, numa hora de aperto, as diferenças são colocadas de lado e funcionam como um corpo. Ninguém está realmente sozinho.”

A estreita ligação com a terra e com a comunidade é uma característica muito particular destes lugares. “Lembro-me que cheguei a Viade de Baixo num dia em que havia chega de bois”, recorda. “Era final de tarde, estava uma luz linda. Havia roulottes a vender farturas e cerveja e um senhor com um acordeão começou a cantar músicas tradicionais. Comecei a ouvir as letras e eram todas sobre a perda de pessoas, sobre quem vai e não volta. Histórias de emigração, de saudade, do lar que foi deixado para trás. Estavam todos a cantar e pensei ‘que coisa linda que estou a assistir’.” O touro vencedor da chega – uma prova de força, sem sangue, entre bois de duas aldeias – aproximou-se de um dos residentes e cuidador “e comportou-se como um cão”, relembra, entre sorrisos. “E vi o homem a fazer-lhe festas atrás da orelha. Não queria acreditar. Existe uma ligação especial entre pessoas e animais neste lugar.”

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Criador de gado faz festas num touro antes de começar a chega de bois, na vila de Viade de Baixo. As chegas são duelos entre touros, muito populares na região do Barroso. Durante os meses de verão, elas atraem multidões. ©André Vieira

Produzir (e amar) aquilo que se consome

Nas aldeias da região do Barroso, subsiste ainda um modo de vida auto-suficiente. O pão que está sobre a mesa foi feito por quem semeou o trigo. O vinho que enche os copos foi espremido das uvas daquela propriedade. O presunto que está no prato será comido por quem criou o porco. O fotógrafo sabe que é assim porque foi, muitas vezes, convidado a entrar nas casas e a comer do que lhe ofereciam. “Trataram-me muito bem. Havia sempre algo na mesa para mim, quando visitava.”

André relembra alguns dos dias mais marcantes. Entre esses está o dia de matança do porco. “Tem a sua dose de violência, claro. Mas é uma actividade colectiva, vizinhos e amigos juntam-se para isso. É um evento, um ritual. Eles matam o animal que alimentaram, criaram. Não é um processo mecânico, não é como ir a uma prateleira de supermercado.” Acredita que, de certo modo, essa forma de matar revela muito respeito pelo porco. “Cada família mata três porcos por ano, não é muito. E eles comem tudo, tudo é aproveitado e guardado para ser consumido durante o ano.”

Noutro dia de matança, noutra casa, o fotógrafo conheceu Paulo, um criador de ovelhas. “Estávamos a conversar e ele soltou as ovelhas adultas, que foram para o pasto, deixando no estábulo apenas as pequeninas. Ficaram por ali, como bolinhas, saltitando”, recorda André Vieira. Com um cordeirinho no colo, Paulo disse ao fotógrafo: “Eu planto e corto o feno que ele come, trago a água que ele bebe, eu ajudei-o a nascer. Também sou eu que o mato. Só não o como.” Paulo não aceita a ideia de mandar matar, de forma mecânica, os animais que cria. Não considera ético. “A morte faz parte da vida. Se tem de acontecer, que seja com o respeito que animal merece.”

Paulo Pires segura um cordeiro recém-nascido, no seu estábulo, em Covas do Barroso. Pires sente orgulho na responsabilidade de cuidar de todos os aspectos da vida dos seus animais, desde ajudá-los a nascer a cultivar o feno que eles comem. ©André Vieira
Criador de gado tenta domar o seu touro, após ter recebido um prémio no Concurso Nacional de Carnes Tradicionais Portuguesa, em Salto. O gado de raça barrosã é conhecido pelo seu tamanho pequeno, pelos seus longo chifres (que podem atingir um metro de comprimento) e pela agilidade com que percorre o terreno montanhoso da região. A sua carne é considerada uma iguaria e a sua popularidade está em crescimento em todo o país. ©André Vieira
Filipe Coelho (ao centro) prepara-se, com a ajuda dos vizinhos e amigos, para desmembrar os três porcos que mataram nessa manhã, que serão transformados também em presuntos e salsichas que serão alimento da família ao longo do ano. ©André Vieira
As mulheres cozinham numa cozinha antiga, em Covas do Barroso, enquanto os enchidos estão pendurados em traves, no tecto, para serem fumados. Todos os anos, no início do inverno, os residentes matam porcos para produzir os enchidos que serão alimento ao longo do ano. A matança do porco é um evento comunitário em que participam amigos e vizinhos, ajudando no desmembramento dos animais. No final, é oferecido um banquete a todos os que participaram. ©André Vieira
Maria Emilia da Silva trabalha a massa para cozer pão para a sua família no forno comunitário, em Covas do Barroso. ©André Vieira
Agostinho Gomes, agricultor em Vilarinho Seco, prepara-se para soltar as vacas para o pasto. O gado do Barroso alimentam-se de pasto todo o ano, nunca de ração. Muitas áreas de pasto são baldios, que são usados como terrenos comunitários. ©André Vieira
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Paulo Pires segura um cordeiro recém-nascido, no seu estábulo, em Covas do Barroso. Pires sente orgulho na responsabilidade de cuidar de todos os aspectos da vida dos seus animais, desde ajudá-los a nascer a cultivar o feno que eles comem. ©André Vieira

A carne barrosã é famosa em todo o território português – e também além-fronteiras – por ser uma carne bovina saborosa, tenra. “Eu nunca tinha visto um boi a saltar assim, parecia um cabrito”, recorda, entre gargalhadas. “Se não se tivesse adaptado à geografia do local, às montanhas, não teria sobrevivido. Isso faz dele um animal muito particular, especial.” Os enchidos de porco que são produzidos nas aldeias do Barroso também assumem algum protagonismo nas imagens do brasileiro. “Há sempre um presunto pronto a ser cortado em cada casa de aldeia. Chouriço, salpicão.” Assim como as tradições religiosas – cristãs, mas com laivos de cultura pagã.

A ameaça do lítio

À medida que André Vieira ganhava a confiança dos habitantes das duas aldeias, apercebia-se de um sentimento generalizado de desconforto entre os habitantes. “Eles sentem-se muito ignorados, não apreciados [no contexto do país]. Sabem que são vistos como saloios, rudes, primitivos, e sentem-se muito magoados com isso.”

Apesar do nível de escolaridade pouco elevado nos concelhos de Boticas e de Montalegre, que se deve também ao facto de a população ter diminuído significativamente nos concelhos nos últimos anos, o fotógrafo teve contacto com pessoas que considera sofisticadas. “Têm uma percepção clara e moderna do que são e do que pretendem. Têm muita consciência da riqueza que os rodeia, emocionam-se com as paisagens. É uma paixão diária.”

Esse apego é, frequentemente, traduzido em luta política. “A questão das minas de lítio é um exemplo do seu nível de consciência relativamente ao que se passa em seu torno”, refere o fotógrafo, relembrando os esforços das populações no sentido de travar a exploração de lítio na região. “Sabem que a exploração mineira constitui uma grande ameaça à região. O pó da mina irá poluir as águas, as terras, os cultivos, irá destruir paisagens e afastar o turismo.”

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As montanhas do Barroso com vista sobre a aldeia Espertina iluminada por raios de sol que irromper por entre nuvens carregadas. ©André Vieira

O fotógrafo estabelece um paralelo entre o Barroso e a Amazónia, no Brasil, região onde trabalhou durante alguns anos. “Estamos a falar de populações que valorizam muito as características naturais dos locais e que são, de repente, confrontadas com as soluções mágicas de pessoas que vêm de fora e prometem trazer o desenvolvimento – um desenvolvimento, na minha opinião, equivocado, com visão de curto prazo, que sacrifica património que está ali há milhares de anos e que, bem usado, teria um potencial enorme.”

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