A educação tem sempre convivido com um desafio muito importante quando falamos da sua definição e respectivas consolidações ou reconfigurações: a tendência da redução do processo educativo – ou, melhor ainda no plural, dos processos educativos – ao ensino-aprendizagem do/e ao contexto escolar, e a consequente perspectivação do estudante como categoria única de vida assumida pelas crianças e pelos jovens, e da escola como arquitectura exclusiva da preparação destes indivíduos para um alegado futuro de sucesso. Contudo, a meu ver, esta concepção que se tem reproduzido ao longo de gerações, e que ainda patenteia a actualidade dos acontecimentos, tem sido o caminho perfeito para minar e limitar as potencialidades da educação na construção de um projecto de humanidade mais enriquecedor.
A expressão “cidadãos do aqui-e-agora” que consubstancia parte do título deste artigo não é minha. Provém de um artigo de Isabel Menezes, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), que saiu no PÚBLICO a propósito da discussão sobre a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento (ECD) e a sua obrigatoriedade enquanto tal no currículo dos alunos.
Nesse texto, a referida expressão tem por objectivo esclarecer que “as crianças e jovens são pessoas com identidade, direitos e autonomia”, características que lhes conferem direitos à participação (política, mas também cultural, social e até económica) através da sua voz e dos seus actos. E acrescenta-se ainda o seguinte: “Não são [as crianças e jovens] propriedade das escolas, mas também não são propriedade das famílias”. Ora, se as famílias geralmente o sabem, pois entregam os rebentos às possibilidades de confronto, de capacitação e de novas interpretações – veja-se o quanto foi discutido, no âmbito da ECD, um único caso mediático de um pai que sobrepunha o seu papel de educar à missão escolar –, por outro lado, as escolas são as instituições que não têm aceitado bem a existência de outros quadros e canais de socialização educacional por onde os mais novos podem produzir e reproduzir conhecimentos.
Aliás, não é por acaso que escrevo o presente texto. A 24 de Novembro, a SIC emitiu, como tem feito nas últimas semanas, o programa semanal 15/25, no qual adolescentes e jovens são interpelados e chamados a convocar as suas experiências e reflexões acerca de uma temática concreta. Nessa semana, o assunto debatido foi a escola e a sua importância para os que a frequentam nos seus percursos como pessoas. Os relatos daqueles que foram entrevistados detiveram vários padrões no que concerne à perspectiva da instituição escolar e do que é feito na mesma, nomeadamente os seguintes: a escola é um lugar concentrado exclusivamente, ou quase, na matéria formal; não prepara os alunos para os assuntos sociais relevantes; e não fomenta uma motivação para que os mesmos consigam compreender as razões de terem de a frequentar, sobretudo num longo conjunto de anos das respectivas vidas.
Conseguimos ver, portanto, que a escola de hoje não tem tido, a começar pelo que defendem os seus principais beneficiários, uma articulação saudável e crítica com o que se passa no exterior da mesma. Tem-se, portanto, considerado como uma instituição com um certo carácter “mítico”, inabalável, ausente de um mundo onde coisas importantes, graves, diversas e que marcam as trajectórias de todos nós acontecem todos os dias. E é nesta forma de estar que a educação e todas as suas dimensões – formal, não-formal e informal – passam a estar subsumidas num processo que se resume à mera separação entre um orador que transmite conhecimentos e uma audiência que muito os ouve, pouco os regista e ainda menos os consegue aplicar com resultados por si considerados eficazes e benéficos em termos de valores, identidades e competências – ou seja, com resultados na sua cidadania “aqui-e-agora”.
Neste sentido, o que aqui proponho, sem possuir quaisquer intentos revolucionários a curto prazo, é, no entanto, uma forma progressiva de olhar de maneira diferente para as categorias educação, escola, aluno/estudante e professor com base em dois princípios.
O primeiro é o de que as crianças e os jovens não são meros rótulos que correspondem a um enclausuramento da sua pessoa e das oportunidades de aprender à sala de aula. É necessário compreender estes sujeitos enquanto membros das suas culturas juvenis, tal como se pode atingir na visão do cientista social José Machado Pais: na qualidade de participantes no interior de grupos onde não só são valorizadas as práticas lúdicas, assim como outras práticas sociais de mobilização social e política, de reivindicação de atitudes e personificações e de (re)invenções do quotidiano, que podem ir das formas artísticas de intervenção às proclamações de revolta a partir do mundo digital. Estas culturas juvenis, enquanto produções simultâneas de regras, de desrespeitos às regras e de resistências, podem ter um contacto mais ou menos privilegiado com a escola, mas existem com a sua devida autonomia e não como reféns daquela.
E, em segundo lugar, uma vez que os jovens têm uma vida nas suas interacções intra e intergrupais fora dos muros da escola, torna-se crucial entender e colocar realmente em prática aquilo que José Alberto Correia (1998, p. 114) afirma na obra Para uma teoria crítica da educação, sobre o ofício do aluno: o estudante é “alguém que está na escola – para passar a ser um trabalhador escolar, ou seja, alguém que vai à escola”. O aluno, destarte, é uma pessoa que vê parte da sua vida na escola, mas o resto fora desta, e a sua educação não se cinge, por isso, ao que aprende no contexto escolar. É uma educação plurívoca, teórica e praticável, descritiva, reflexiva e crítica, ética e estética, conseguida e prosseguida através da família, dos amigos, dos grupos de pares (as tais culturas juvenis e outras) – e claro, também da escola.
Somente se a escola tiver em atenção esta existência para lá das salas de aula, das cantinas e dos recreios, sem perder consciência da sua relevância para a sociedade, é que conseguirá gerir e gerar pessoas capazes de lidar com as exigências dos momentos e dos espaços do presente. Somente se os alunos forem seres humanos que vivem e pensam a matéria e igualmente a vida; se os professores forem sábios e companheiros com paciência para ensinar e abertura para aprender; e se estes dois grupos de pessoas se articularem com uma escola que é mais do que uma infra-estrutura, e uma educação que é mais do que uma escolarização estrita de saberes, é que teremos efectivamente as educações cidadãs do aqui e do agora – ambiental, política, cultural, económica, de género, dos media, do risco, entre outras –, tão prontamente propostas e lavradas nos currículos de cada ano lectivo.