Mais chuvosos, velozes e intensos, os furacões do Atlântico estão a mudar

É difícil estabelecer todas as ligações entre as alterações climáticas provocadas pelo homem e o comportamento ciclónico no oceano Atlântico, que nos ofereceu uma temporada recorde este ano. Mas há sinais evidentes de mudança que poderão bater à porta de Portugal.

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Imagem de satélite de 14 de Setembro: três furacões (Paulette, Sally e Teddy) e duas tempestades tropicais (René e Vicky) no Atlântico; e no Pacífico a tempestade tropical Karina; Foto: NOAA

Novembro de 2020 ficará associado a más memórias na América Central. Em menos de 15 dias, dois grandes furacões de categoria 4, o Eta e o Iota, atingiram a costa da Nicarágua e entraram pelo continente causando chuvas torrenciais, destruindo propriedades, matando centenas de pessoas e desalojando outros milhares. O desfecho da temporada de furacões, com início a 1 de Junho e fim a 30 de Novembro, veio intensificar a perplexidade de um ano recorde de 31 tempestades, 30 com direito a nome, 13 delas a subirem ao estatuto de furacões e seis a atingirem as categorias máximas de 4 e 5 na escala de Saffir-Simpson. Uma fotografia de satélite tirada a 14 de Setembro, que mostra em simultâneo no Atlântico três furacões (Paulette, Sally e Teddy) e duas tempestades tropicais (René e Vicky), oferece uma boa síntese da temporada, que não deixou Portugal de fora.

A 18 de Setembro, a tempestade subtropical Alpha, que se formou perto da Península Ibérica, chegou à costa portuguesa, produzindo chuva, ventos com rajadas que atingiram os 100 quilómetros por hora e dois tornados registados no Alentejo, de acordo com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). “A tempestade Alpha formou-se muito próximo de Portugal continental, não sendo comum formarem-se tempestades com estas características em latitudes tão elevadas”, disse ao PÚBLICO Carlos Ramalho, meteorologista e delegado regional do IPMA nos Açores.
A tempestade Alpha não chegou a alcançar o estatuto de furacão, para isso teria que produzir ventos acima dos 119 quilómetros por hora. Mesmo assim, matou uma pessoa e deixou estragos no valor de alguns milhões de euros, de acordo com o Relatório de Catástrofes Mundiais de Setembro, da seguradora Aon. Será este um fenómeno único, ou representa uma tendência nova? “A tempestade Alpha por si só não [representa uma tendência própria]. No entanto, se somarmos à tempestade Alpha (2020), a Leslie [que atingiu Portugal, em 2018] e a Ophelia [que passou perto do continente, em 2017], então aí parece que nos últimos anos estamos a assistir a um padrão em que este tipo de situação meteorológica se torna mais frequente”, responde Carlos Ramalho.

Registos pouco fiáveis

Uma das perguntas que está em cima da mesa das equipas de climatologistas é se as alterações climáticas causadas pelos humanos estão a transformar a dinâmica dos furacões (ciclone tropicais). Para responder a esta pergunta é necessário compreender como se dá a sua formação, quais os factores que provocam variações na sua actividade ao longo do tempo, é preciso ter um registo histórico extenso e completo para se comparar observações actuais com o passado e, finalmente, criar modelos climáticos suficientemente robustos para fazerem uma previsão do futuro.

A ciência está longe de assegurar estes aspectos. Até uma questão banal como saber se a actividade recorde deste ano no Atlântico faz parte da variabilidade natural fica por responder. Uma das formas de estimar a variabilidade é a partir do registo de furacões ao longo do tempo. “Apesar de termos registos com séculos, o problema é que eles não são muito fiáveis. Isso torna problemático usá-los para estimar a variabilidade natural”, explica ao PÚBLICO Thomas Knutson, meteorologista e climatologista da Agência Nacional do Oceano e Atmosfera (NOAA, sigla em inglês), dos Estados Unidos, acrescentando que é preciso ser cauteloso com a própria ideia de 2020 ser um ano recorde. “É uma temporada com um número recorde de tempestades contabilizadas, mas será que é um ano recorde do número de tempestades que aconteceram? Tenho mais dificuldade em dizer isso, porque não temos a certeza real do número de tempestades que existiram durante épocas de muita actividade, como na década de 1930.”

Segundo o especialista, só a partir da década de 1940 é que os serviços meteorológicos nos Estados Unidos começaram a servir-se de aviões para o reconhecimento de tempestades no Atlântico Norte. Antes, furacões que não atingissem as ilhas ou os continentes passariam despercebidos e não eram contabilizados. Uma observação mais completa só foi possível no final da década de 1960, com o uso de satélites para se obterem imagens da Terra.

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Passagem do furacão Lorenzo pelos Açores em Outubro de 2019 Rui Soares

Ligar os pontos

Uma das condições determinantes para a formação das tempestades tropicais é a temperatura superficial do oceano, que tem de atingir os 27 graus Celsius. “Cerca de 60% dos ciclones tropicais no Atlântico são formados a partir de perturbações atmosféricas na baixa troposfera com origem na costa de África. Estes ciclones deslocam-se para oeste ou noroeste atingindo, normalmente, as Caraíbas ou os Estados Unidos.

Por vezes, podem deslocar-se para norte, como foi o caso do Lorenzo [de 2019], que chegou a ser de categoria 5 poucos dias antes de atingir os Açores”, explica Carlos Ramalho.
Existem ciclones tropicais que se formam noutras zonas do Atlântico, mas são tendencialmente mais fracos. As tempestades subtropicais, como a Alpha, surgem a latitudes mais a norte, onde as temperaturas à superfície do oceano são um pouco mais baixas e têm, por isso, outras características. Enquanto nas tempestades tropicais os ventos mais fortes sopram junto ao olho da tempestade, nas tempestades subtropicais estão afastados do olho.

Além da temperatura da superfície do oceano, o gradiente vertical da velocidade do vento e a humidade existente na atmosfera são outros dos factores que definem a formação das tempestades localmente. Mas há ainda padrões que entram em jogo no Atlântico. Um deles é a oscilação multidecadal, um padrão da temperatura superficial do Atlântico Norte que ora está numa fase mais fria, ora está numa fase mais quente, produzindo furacões mais intensos. As fases duram entre 20 a 40 anos. “Estas mudanças são naturais e têm estado a ocorrer pelo menos nos últimos 1000 anos”, refere o site da NOAA. Desde meados da década de 1990 que se transitou para a fase quente.

Por outro lado, 2020 é um ano de La Niña, lembra Carlos Ramalho, que, ao contrário do El Niño, surge quando a temperatura da superfície do oceano Pacífico está abaixo do normal e tem influência noutro oceano: “A ocorrência deste fenómeno favorece a formação de ciclones tropicais no Atlântico.”

Um fenómeno que também está em jogo, adianta Thomas Knutson, é a diminuição da emissão de aerossóis pelos Estados Unidos a pela Europa a partir da década de 1970, desde que foram aprovadas leis contra a poluição atmosférica. As partículas de aerossóis ajudam a reflectir os raios solares, minorando o efeito energético do Sol. Se estas partículas começam a diminuir, então passa a chegar mais energia à superfície. “É difícil ligar todos os pontos daquilo que está a acontecer no oceano Atlântico e relacionar isso com as emissões de gases com efeito de estufa. E é importante ligar todos os pontos, se queremos avançar com a investigação e falar acerca do futuro”, afirma Thomas Knutson.

Para lá da dúvida

Até agora não há indicação de que o número de furacões por temporada esteja a aumentar. Mas em relação à intensidade o cenário é diferente. “O número de grandes furacões tem vindo a aumentar e o número de tempestades que alcançam a fasquia de furacão também tem vindo a aumentar no Atlântico”, sublinha Thomas Knutson. Mas a causa da tendência pode ser “em parte a variabilidade natural, em parte a redução de aerossóis, talvez as forças do efeito de estufa estejam a dar uma contribuição”. De acordo com os modelos, o aumento de intensidade da actividade ciclónica é de 2 a 3% por cada grau de temperatura, e detectar um sinal tão pequeno nas observações é difícil.

Mas há fenómenos que estão para lá da dúvida. “Podemos dizer, com bastante certeza, que os humanos e o aquecimento global estão a alterar o cenário relativamente aos danos causados pelos furacões apenas por causa do nível do mar”, assegura Thomas Knutson, “As mesmas tempestades vão causar mais danos por inundações devido ao aumento do nível do mar.” Neste aspecto, Portugal tem vulnerabilidades. “As zonas costeiras serão as mais afectadas. Este tipo de tempestade, além da precipitação intensa e do vento, também provoca forte agitação marítima”, sublinha Carlos Ramalho.

Estima-se também que o aumento da temperatura irá potenciar a capacidade de armazenamento de humidade na atmosfera, alimentando mais os furacões. “Nos modelos isso dá um sinal muito claro de um aumento do rácio de precipitação de 7% [por cada grau Celsius a mais]. Mas ainda não fomos capazes de encontrar um conjunto claro de observações que mostrassem o crescimento”, adianta Thomas Knutson.

Um artigo de uma equipa japonesa que saiu este mês na revista Nature sustentava, a partir de modelos computacionais, que o aumento de humidade era também uma espécie de combustível adicional para os furacões, fazendo com que demorassem mais tempo a perder a energia ao chegarem a terra, resultando numa capacidade de destruição maior.

O futuro na Europa

A rapidez com que o Eta e o Iota evoluíram para grandes furacões não passou despercebida. Em apenas 24 horas, a velocidade dos ventos das duas tempestades aumentou 128 quilómetros por hora, adianta o jornal norte-americano Washington Post. Este rápido aumento de velocidade deixa menos margem de manobra para as populações reagirem. “No início da década de 1980, a hipótese de um furacão sofrer uma intensificação dos ventos de 56 quilómetros por hora ou mais num período de 24 horas era de um em 100”, explicou ao jornal James Kossin, climatologista e meteorologista da NOAA, acrescentando que 30 anos depois esta probabilidade aumentou para um em 20. “As águas mais quentes contribuíram certamente para uma intensificação mais rápida e explosiva este ano.”

Este aumento de temperatura também poderá vir a ter impacto na Europa Ocidental e na Península Ibérica, avisa Geert Jan van Oldenborgh, climatologista do Real Instituto Meteorológico da Holanda, que em 2013 foi um dos autores a assinar um artigo importante na revista Geophysical Research Letters sobre o aumento de furacões a atingirem a Europa, no futuro. De acordo com o estudo feito a partir de modelos climáticos, os investigadores perceberam que o aumento da temperatura da superfície do Atlântico facilitará a circulação dos ciclones tropicais. “Podemos esperar mais tempestades tropicais do Atlântico Norte a transitar para latitudes mais a norte atingindo a Europa, incluindo a Península Ibérica, com ventos ciclónicos”, afirma ao PÚBLICO.

Em 2019, Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, dizia que Portugal tinha entrado na rota dos furacões. “Portugal já está na rota dos furacões desde sempre, devido aos Açores”, relembra Carlos Ramalho. “Mas Portugal continental tem de facto vindo a ser mais afectado nos últimos anos, portanto parece existir esta tendência”.

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