A cultura do cancelamento, ou como calar as mulheres?

As mulheres, ainda hoje discriminadas, não podem tolerar uma cultura do cancelamento que as impeça de exercer os seus direitos e de dizer a verdade sobre a sua realidade. E sem verdade não há justiça.

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O novo livro de JK Rowling foi lançado no mercado de língua inglesa no dia 15 de Setembro. A reacção imediata ao livro foi um novo capítulo na corrente de acusações contra a autora desde que escreveu um ensaio e série de tweets em Junho deste ano sobre os direitos das mulheres. Rowling tem recebido insultos e ameaças violentas desde então. 

As questões sobre a cultura do cancelamento ganharam um novo fôlego perante as reacções ao texto de JK Rowling. Como muitas feministas, JK Rowling insiste: não é discurso de ódio centrar a defesa dos direitos das mulheres, e chamar a atenção para conflitos que só se podem resolver com um debate aberto. E não é discurso de ódio querer saber a verdade. A própria Chimananda Ngozi Adichie, numa entrevista ao The Guardian de 14 de Novembro, defende que o texto de Rowling é “perfeitamente razoável”.  

Muitos têm-se dedicado a queimar os livros de Rowling. Consideram que as suas palavras são ofensas transfóbicas imperdoáveis que justificam as reacções violentas contra ela. Mas ignoram as preocupações que formula. Há legítimas questões morais, políticas e epistémicas em causa: quais os motivos das persistentes desigualdades entre homens e mulheres? Porque motivo vários países registam um aumento exponencial de meninas com incongruência de género? Quantas dessas meninas querem fugir da sua condição como pessoa do sexo feminino por terem sofrido abusos, ou querem fugir da homofobia de que são alvo como lésbicas? Que efeitos a largo prazo têm esses tratamentos para o seu bem-estar e saúde? E que interesses económicos há por detrás?  

Estas preocupações foram reforçadas por uma reportagem da BBC Newsnight, pelos processos judiciais contra a clínica Tavistock do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) que trata crianças e adolescentes com disforia sexual, por reportagens sobre mulheres “detrans" e por estudos que mostram que cirurgias e tratamentos hormonais estão longe de garantir melhorias estatisticamente significativas.  

Em Julho, a Harper’s Magazine publicou uma carta (A Carta) assinada por JK Rowling, Salman Rushdie, Gloria Steinem, Noam Chomsky, entre outros. A Carta afirma que “protestos em prol da justiça racial e social estão a conduzir a exigências de reformas tardias da polícia, juntamente com apelos mais amplos a uma maior igualdade e inclusão em toda a nossa sociedade...” Chama contudo a atenção para o facto de que vigora “uma intolerância a opiniões opostas, uma moda de envergonhar e ostracizar publicamente, e a tendência para dissolver questões políticas complexas numa certeza moral cega.” 

Mulheres como Rowling ou Adichie dificilmente serão silenciadas, mas pessoas com menos recursos sim. Como diz Helen Lewis, a cultura do cancelamento ou bem castiga desproporcionalmente uma falta menor, ou bem castiga pessoas inocentes. As suas verdadeiras vítimas são as muitas pessoas sem poder que têm sido envergonhadas, despedidas, ou ostracizadas, por exemplo: uma estudante de doutoramento da Republica Dominicana (latina e negra), uma realizadora independente na Índia, uma professora de história das mulheres que precisa de guarda-costas para dar aulas, uma professora de direitos humanos (lésbica e judia), uma activista e política negra, judia e lésbica, uma candidata a vagas na polícia no Reino Unido, médicas com medo de falar, académicas impedidas de investigar, uma filósofa lésbica expulsa do Twitter, várias comunidades no Reddit dedicadas às mulheres e aos seus interesses, uma advogada negra e activista pelos direitos LGB, entre tantas outras.  

A concepção da injustiça que dá primazia à escolha e aos sentimentos individuais ignora os conflitos de direitos em causa, e também a diferença entre direitos positivos e negativos. Devemos dar prioridade aos sentimentos e crenças pessoais, cuja expressão cai sob a categoria de direitos de liberdade ou negativos, ou devemos tratar esses sentimentos como a base de direitos positivos, que impõem deveres e obrigações aos demais, como muitos reclamam? E como comparamos essa reclamação com o direito positivo e fundamental das mulheres à integridade física e à autonomia, àquilo que Jeremy Waldron chama a “garantia de dignidade”? As mulheres, ainda hoje discriminadas, não podem tolerar uma cultura do cancelamento que as impeça de exercer os seus direitos e de dizer a verdade sobre a sua realidade. E sem verdade não há justiça.

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