Teatro Maizum volta aos clássicos: perceber o passado para intervir bem no presente

Chegados à 5.ª edição, os Clássicos em Cena apresentam a partir desta segunda-feira, no Facebook, leituras encenadas de peças quinhentistas onde ecoa muito do nosso presente.

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Momento de uma das leituras encenadas pelo Teatro Maizum PEDRO SOARES

Mesmo em tempos de pandemia, o Teatro Maizum não desiste. Começa esta segunda-feira a 5.ª edição dos Clássicos em Cena, desta vez sem público e transmitida em directo no endereço de Facebook do grupo, com leituras encenadas de três autos quinhentistas, todos eles de autor anónimo: o Auto de D. Luís e dos Turcos (dia 23), o Auto de Vicente Anes Joeira (dia 25) e o Auto das Padeiras ou da Fome (dia 27). A transmissão será feita sempre às 19 horas, seguindo-se, às 20h, tertúlias em torno de cada um dos autos.

A primeira conta com José Camões (Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa, CET-UL), Márcio Ricardo Coelho Muniz (Universidade Federal da Bahia), Armando Nascimento Rosa (Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa - Centro de Investigação em Artes da Comunicação, ESTC/IPL-CIAC), Júlio Martín da Fonseca (Universidade Aberta) e Silvina Pereira (Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, CEC-UL); na segunda participarão Jorge Castro Guedes (Director Artístico da Seiva Trupe), Ricardo Nobre (CEC-UL), Margarida Rosa Rodrigues, Paulo Lages e Silvina Pereira (CEC/UL); e na terceira estarão Rui Carlos Fonseca (CEC/UL), Susana Sá, Eduardo Frazão e Silvina Pereira (CEC/UL).

A leitura encenada dos autos estará a cargo dos actores Ana Sofia Santos, Diogo Andrade, Eduardo Frazão, Eduardo Molina, Guilherme Barroso, Isabel Fernandes, João Ferrador, Júlio Martín, Margarida Rosa Rodrigues, Maria Ribeiro, Mário Abel Costa, Miguel Vasques, Paulo Lages, Silvina Pereira, Susana Sá e Tiago de Almeida.

Duas maneiras de ver o mundo

“Há quatro anos fizemos uma trilogia que mostrava o teatro dentro do teatro”, diz ao PÚBLICO Silvina Pereira, actriz, investigadora, encenadora e directora artística do Teatro Maizum. “Nesta, o denominador comum é o olhar do outro. Com aspectos que, mesmo passados quinhentos anos, se mostram bastante actuais na contemporaneidade.”

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Silvina Pereira LUÍSA FERREIRA

A começar pelo primeiro auto desta edição, o de D. Luís e dos Turcos, que originalmente se chamava Auto dos Cativos: “É um confronto entre dois mundos, o otomano e o cristão. Neste auto, onde se falam três línguas (português, castelhano e italiano), há um pouco de tudo: uma história de amor, entre um fidalgo português (D. Luís) e uma donzela castelhana (Dona Clara); uma fuga, por barco, usando o estratagema de se passarem por irmãos; um naufrágio; há morte; há o dar à costa nas praias da Turquia, onde um príncipe turco fica apaixonado por ela e, em lugar de ficaram cativos, como os tomavam por irmãos ficam numa situação especial. Ora como o pai do príncipe turco também se apaixona por ela, o jovem casal recorre a um ardil: a jovem diz ao príncipe que aceita o amor dele se ele mudar de fé, de religião; se fugir com ela para Espanha; e se se livrar do pai, que também concorre pelo seu amor. O príncipe fica louco de ciúmes, exige uma prova e afirma que, se fosse esse o caso, cortaria a cabeça ao pai.” Então ela arranja um encontro com o pai do príncipe, este ouve a conversa, e o príncipe decide-se: aceita mudar de religião e de país, para fugir com ela, e corta a cabeça ao pai. Enquanto isso, o casal organizava a sua fuga por barco, com a cumplicidade de outros cativos.

“O fim é de uma grande ambiguidade. O príncipe chega ao cais com a cabeça do pai enrolada num pano, ela, já na nau, diz que não casará com ele (ou seja, não cumpre com a sua palavra) e, sendo assim, lhe dará a sua irmã. Mas não se percebe se ele chega a embarcar ou não. O que percebemos é que à atracção por aquela bela castelhana se junta a traição dos cristãos. Amor, naufrágio, parricídio, aparecem misturados com duas maneiras de ver o mundo. Isto, pelo que tenho lido, é a primeira vez que aparece um turco no teatro. Que não é vituperado com os habituais lugares-comuns, como luxurioso, vicioso e cruel, mas fala do seu amor como D. Luís, com nobreza e cavalheirismo.”

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Auto de Vicente Anes Joeira

Estereótipos, corrupção e ganância

No auto seguinte, o de Vicente Anes Joeira, também se contraria um velho estereótipo: o do negro incapaz ou ocioso. Partindo de mais uma trama de amor, conta a história de uma donzela deixada aos cuidados de um criado enquanto os seus pais partem em romaria a Santiago de Compostela. As recomendações são para que ela “se resguarde”, não deixe “ninguém” entrar e com “ninguém” fale. “É uma peça de amores. Os pais vão-se embora, ela fica aos cuidados do Ratinho (o criado da Beira) e acabam enamorados. Vão para casar, mas logo que casam ela fica muito mal-disposta, grita de dor e o desgraçado vai à procura de um mestre de medicina. Que é um negro doutor, médico, que sabe o que está a fazer. Quem não sabe o que está a fazer é o rapaz, que troca tudo o que o médico lhe diz.” Exemplo: o médico recomenda-lhe uma infusão de violetas e ele, como não tinha em casa nenhuma violeta [instrumento da família do violino], parte uma viola aos pedaços, ferve um bocado da madeira e dá aquele “chá de viola” a beber à jovem.

O terceiro, Auto das Padeiras ou da Fome, é, segundo Silvina Pereira, “muito curioso”: “É uma alegoria. Primeiro aparece Lisboa, toda contente porque é uma cidade nobre, cabeça da Europa com gentes de todo o lado, mas queixa-se porque atravessa uma crise de grande escassez, de peste e de morte. Aqui entra a Fome, que é uma mulher magra e vestida de preto, que vem dizer a Lisboa que a culpa não é da Fome, que ela olhe bem para os excessos dos açambarcadores, os subornos, a corrupção, a ganância e inclusive a falta de justiça. E que é ela, Lisboa, a responsável por fechar os olhos e ser convivente com todos os excessos. Lisboa responde que quer ter mercadores ricos e tem interesse em que eles tenham liberdade para ganharem o que quiserem. Ao que a Fome lhe riposta que isso não poderá ser feito à custa do povo, que é quem está a sofrer com tais vícios.”

Lisboa promete então estar atenta e castigar, quando tal for necessário, os criminosos. Mas estes não são só os mercadores ricos. “Em seguida vêm duas personagens, padeiras, que são umas intrujonas do pior, umas vigaristas, povo sem escrúpulos, que tinham sido peixeiras e que atiram uma à outra, discutindo, as vigarices que faziam. E vêm também dois diabos, que descobrem na Lusitânia um terreno maravilhoso para o crime. E depois deles vêm dois cereais, o Milho e o Centeio, que trocam acusações e andam à pancada.” Nem eles se entendem, em tão dantesco cenário. A peça termina com uma intervenção providencial da Virgem Maria, “que vem defender as gentes dos seus excessos”.

Um teatro atento ao seu presente

Estas três peças, diz Silvina Pereira, mostram que o teatro, neste caso o quinhentista, “está atento ao seu presente e fala de forma a dar sentido e compreensão ao que acontece. Essa tem sido a minha tese: a de que o século XVI respirava teatro, havia muito e bom teatro nesse tempo e esse teatro estava ao serviço da vida, ajudando o ser humano a ultrapassar os desafios que se lhe colocam.” E é o que esta trilogia mostra: “Fala de matérias que hoje temos pela frente, como seja o entendimento do outro, os naufrágios, situações de cativeiro, ser cativo, e por outro lado a fome, a ignorância, a corrupção, a injustiça.”

E o terceiro auto contém um imperioso alerta, que se mantém actual: “A acrescentar à dor, à morte, à peste ou à escassez de alimentos, há a terrível e cruel acção humana, que se aproveita da dor, da morte, da peste e da escassez, para açambarcar e ganhar proveitos à conta da miséria dos outros. Vemos, por aqui, que as coisas actuais são, no fundo, muito antigas, e se queremos intervir bem no presente e acautelar o futuro, também temos de perceber bem o passado.” É o que o Teatro Maizum se propõe continuar a fazer, quer nestas leituras encenadas, quer em futuras (e almejadas) encenações de tais peças.

Para 2021, além de duas iniciativas em torno de Jorge Ferreira de Vasconcelos (uma master class sobre a Comedia Aulegrafia, em Março, no Palácio Fronteira; e itinerários por Lisboa, em Maio e Junho, numa organização da CML-Cultura), prevê-se a repetição, mas com público, desta 5.ª edição das leituras encenadas (em fins de Junho), a 2.ª edição do Laboratório do Teatro Clássico Português (em Outubro) e a 6.ª edição dos Clássicos em Cena (em Novembro), com A Tragédia do Príncipe João de Diogo de Teive, A Castro de António Ferreira e A Vingança de Agamémnon de Anrique Aires Vitória. O palco escolhido deverá ser, como em 2019, o da Livraria Sá da Costa, em Lisboa.

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