Belver: reflorestar para reduzir risco de incêndio e valorizar o território

Depois dos incêndios de 2003, 2005 e 2017, cortaram-se troncos, arrancaram-se raízes e mobilizaram-se solos. Agora, plantam-se sobreiros e pinheiros-mansos. E vai haver plantas aromáticas e abelhas. “Pior do que foram os últimos 30 anos não será.” Em Belver, a gestão profissional da floresta reduz o risco de incêndio, valoriza o território e, com isso, promove a criação de emprego.

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Marcado por quatro incêndios devastadores em 2003, 2005 e por duas vezes em 2017, há um terreno com 0,825 hectares – cinco prédios rústicos de três proprietários – na freguesia alentejana de Belver que enxerga agora a luz. Onde antes havia pinheiro-bravo e escassas árvores dispersas de eucalipto dizimadas, crescem hoje dezenas de sobreiros plantados após as promissoras primeiras chuvas de Outubro.

Naquela que é a única localidade alentejana na margem direita do rio Tejo, freguesia do concelho de Gavião, juntaram-se parcelas, uniram-se vozes e vontades, angariaram-se verbas, cortaram-se troncos, arrancaram-se raízes, mobilizaram-se os solos e a floresta local está agora a renascer. E a vida dos seus 684 habitantes parece ganhar verde e sentido outra vez.

Através do projecto Reflorestar Belver, uma parceria frutuosa entre a Associação de Produtores Florestais de Belver (APFB) e a empresa Terras de Guidintesta – Sociedade de Desenvolvimento Rural, já foram estabelecidos 139 contratos com proprietários florestais. Correspondem a cerca de 1654 prédios, totalizando uma área de 650 hectares.

Entre as parcelas sob intervenção, está uma mancha contínua de pinheiro-bravo de 14 hectares. Engloba 30 prédios rústicos de 20 proprietários. O PÚBLICO esteve lá.

“Na maior parte, esta área ardeu em 2003 e 2005.” Em 2017, por altura do último incêndio, tinha “essencialmente árvores de 12/14 anos, com algum eucalipto”. Após a preparação das terras e o cair das primeiras chuvas, está hoje replantada com pinheiro-manso. O objectivo, explica Carlos Machado, sócio-gerente da Terras de Guidintesta, é a “produção de fruto (pinhão)”.

A rentabilidade será assegurada pela exploração do pinheiro-manso enxertado. “É nossa intenção fazer a sua exploração em sistema de regadio”, diz o engenheiro florestal. Na mesma unidade de gestão, será ainda instalada “uma área de produção de plantas aromáticas em modo biológico e um apiário”. Nas entrelinhas, serão cultivadas “culturas forrageiras para alimentação animal”.

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Os sobreiros plantados após as promissoras chuvas de Outubro mal se vêem à distância, resguardadas que estão ainda em canudos de protecção.

“Não cedem os terrenos nem fazem a gestão”

Todo este processo custou anos de trabalho, empenho e resiliência. A articulação de todas as vontades fez-se “através de um contrato entre os proprietários, a sociedade [Terras de Guidintesta] e a APFB, que assume o seu papel de fiscal”. É assim que se garante “a supervisão da relação entre as partes, nomeadamente o acompanhamento e a validação anual do valor das unidades de participação de cada proprietário e da sociedade, que servem de referência para a repartição das futuras receitas”, frisa a direcção da associação num depoimento enviado ao PÚBLICO.

Célia Ramalho, técnica daquela entidade, assume que há “pessoas que aderem e pessoas que preferem manter elas a gestão dos terrenos”. E, “infelizmente, também há as que não cedem os terrenos nem fazem a gestão”. Apesar disso, neste momento “já se encontram contratados mais de 650 hectares”. “É um processo que continua, mas estamos confiantes que, desde que as pessoas vejam as coisas acontecer, como está a acontecer agora, elas aderem.”

E a esperança acende-se ainda a outro nível: “Vamos ficar mais protegidos dos incêndios, porque serão mais cerca de 650 hectares com gestão activa. E o sistema de exploração agro-florestal em que assenta a maior parte da nova floresta tem menor risco de incêndio.”

O projecto não se fica por aqui. “Articula-se com outros”: um rebanho comunitário, que visa a gestão de combustíveis florestais através do pastoreio, e o “Aldeia Sustentável, Aldeia Segura”, que ainda está “em fase de lançamento”, refere Célia Ramalho. Tem como objectivo “a promoção da recuperação das hortas na envolvente das aldeias”. No seu conjunto, quando todas as plantações estiverem concluídas e o crescimento da vegetação o comportar, as duas iniciativas “promoverão um ambiente mais seguro em termos de incêndios florestais”.

Tirar o plano do papel

O PÚBLICO visitou estas duas parcelas em processo de reflorestação escassos dias após a plantação dos novos sobreiros. As plantas, de tão jovens, mal se vêem à distância, resguardadas que estão ainda em canudos de protecção.

Nesta fase, na parcela de 0,825 hectares há apenas sobreiros. “É um investimento a longo prazo. No curto prazo, o espaço entre linhas de plantação será usado para culturas forrageiras para a alimentação do efectivo animal.” Carlos Machado explica: “Esta estratégia visa não só obter uma receita imediata, como também contribuir para o controlo dos matos sem que isso se torne um custo que inviabilize a rentabilidade do projecto.”

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"Com o historial de incêndios da região, há muitos anos que os proprietários não conseguem qualquer rentabilidade dos terrenos", explica o engenheiro florestal Carlos Machado.

Aproveitamento dos terrenos sem perder o investimento

O engenheiro florestal relembra como tudo começou. E como Belver entrou no seu quotidiano de trabalho. “Após os incêndios de 2003 e 2005, a Associação de Produtores Florestais promoveu a criação da Zona de Intervenção Florestal da Freguesia de Belver, constituída em 2009 para promover a gestão conjunta dos espaços florestais dos seus associados. Após a constituição, era necessário proceder à elaboração do plano de gestão florestal”, recorda. “Foi nessa altura que me cruzei com a associação. E que fiquei a conhecer Belver.”

Após ter participado na elaboração do plano de gestão florestal, o engenheiro florestal percebeu, no entanto, que “não havia uma estratégia para tirar o plano do papel”. Foi aí que apresentou “uma proposta para desenvolver um projecto de gestão conjunta, assente numa sociedade de gestão florestal e num modelo de parceria com os proprietários dos terrenos”. A ideia, garante Carlos Machado, “foi bem recebida”.

Sabendo que mudar mentalidades não é fácil e que os proprietários, frequentemente, são muito apegados à terra e têm dificuldade em abrir mão da propriedade ou, sequer, da sua gestão, perguntámos a este engenheiro florestal que argumentos usou para colocar no terreno os projectos que trazia na cabeça e no papel.

“Não houve grandes argumentos. Apenas lhes apresentámos uma possível solução para dar um aproveitamento aos seus terrenos sem que tivessem de correr o risco de perder o investimento”, explica ao PÚBLICO.

“Partilha das receitas equilibrada e justa”

Mesmo não podendo garantir à cabeça uma determinada rentabilidade, Carlos Machado traz consigo uma certeza: “Pior do que foram os últimos 30 anos não será, pois, com o historial de incêndios da região, há muitos anos que os proprietários não conseguem qualquer rentabilidade dos terrenos. Aliás, o abandono é consequência disso mesmo.” Por outro lado, “o modelo de parceria não toca na titularidade dos terrenos e a partilha das receitas entre todos é feita de forma equilibrada e justa, em função da área de cada um e do nosso investimento”.

Os resultados obtidos com a venda da produção, garante, “serão repartidos com os proprietários em função de um sistema de unidades de participação, que, na prática, traduzem a área com que cada um participa e, no caso da Terras Guidintesta, com base no montante de investimento realizado.

Também aqui “o universo de proprietários é tratado como um todo”, e, segundo o engenheiro florestal, o rendimento é dissociado de cada parcela de terreno. Portanto, “quando houver receitas, um proprietário recebe a sua quota-parte da produção das suas propriedades, mas, também, das propriedades dos outros proprietários, e vice-versa”.

O sócio-gerente da Terras de Guidintesta está confiante: “No futuro próximo, pretendemos fazer a consolidação do projecto de reflorestar Belver, através de unidades de gestão com áreas que permitam uma gestão multifuncional.” A ideia é conseguir “implantar um sistema agro-florestal capaz de articular várias produções que permitam a sua sustentabilidade nas componentes económica, ambiental e social”.

Com isso, esperam criar “um impacto efectivo na paisagem de Belver” e, ao mesmo tempo, “condições para que o risco de incêndio se mantenha a um nível aceitável que garanta a viabilidade do projecto”.

A direcção da Associação de Produtores Florestais de Belver partilha do optimismo: “A principal vantagem para os proprietários é verem os seus terrenos geridos sem terem de investir.” Célia Ramalho complementa: “A expectativa de retorno existe, embora, na verdade, ela ainda seja uma incógnita, dados os riscos que a floresta apresenta.” Apesar disso, “não havendo investimento por parte dos proprietários, qualquer receita será lucro”.

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