Pobre é para morrer?

A celeridade no assegurar a prestação de cuidados de saúde que evitem a deterioração do estado de saúde da grande parte da população socioeconomicamente desfavorecida em Portugal é um imperativo ético-jurídico urgente.

Foi recentemente suspensa através de Despacho Ministerial, durante o corrente mês, “a atividade assistencial não urgente que, pela sua natureza ou prioridade clínica, não implique risco de vida para os utentes, limitação do seu prognóstico e/ou limitação de acesso a tratamentos periódicos ou de vigilância”.

A interpretação desta determinação não é fácil, por apelar a conceitos relativamente indeterminados. Se optarmos por uma interpretação restritiva, quase nenhuma atividade assistencial será suspensa: basta considerarmos que todo o ato clínico que não seja fútil ou supérfluo, se não for oportunamente realizado, terá consequências no prognóstico previsível da pessoa. Tal será ainda mais claro se atendermos a que a Medicina hoje é, cada vez mais, preventiva e preditiva, assegurando a prestação de cuidados que impeçam ou retardem o aparecimento da doença. Se fizermos uma interpretação ampla desta ordem ministerial, grande parte da atividade assistencial hoje prestada a doentes crónicos (pessoas com diabetes, esclerose múltipla ou Parkinson…) poderá ser suspensa, com possíveis graves consequências na sua esperança de vida.

A determinação do exato conteúdo deste despacho terá consequências na delimitação do universo de pessoas que serão abrangidas, no curto prazo, pela suspensão de atividade assistencial no âmbito dos hospitais do SNS. Porém, independentemente da grandeza do universo abrangido, coloca-se outra questão fundamental: onde irão essas pessoas aceder aos indispensáveis cuidados de saúde de que necessitam e que, com frequência, não serão adiáveis sem consequências mais ou menos sérias para a sua saúde?

A Pordata diz-nos que somos cerca de dez milhões e 280 mil habitantes, dos quais cerca de seis milhões e 600 mil se integravam, em 2018, na população em idade ativa. Que o número de pensionistas, nesse ano, rondava os três milhões de pessoas, sendo o rendimento anual médio dos da Segurança Social manifestamente reduzido. As consequências da pandemia de covid-19 no mercado de trabalho traduziram-se no aumento significativo da taxa de desemprego e da precariedade laboral, elevando, deste modo, o número de pessoas que carecem de proteção da sua saúde no nosso País.

A Constituição diz-nos que o direito à proteção da saúde é realizado através de um SNS universal e geral, incumbindo prioritariamente ao Estado “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação”. A ordem de suspensão poderá impedir o Estado de cumprir parcialmente esta sua tarefa fundamental. Parte (cerca de um milhão e 200 mil) dos cidadãos recorrerá ao subsistema da ADSE. Parte acionará, para o efeito, o contrato de seguro de saúde privado de que é titular… E como acederão a cuidados de saúde “não urgentes” os que não têm proteção alternativa à conferida pelo SNS e que são a grande maioria da população portuguesa?

O reforço orçamental previsto para o SNS só produzirá efeitos atempadamente se se alterarem de forma ainda mais significativa os morosos procedimentos concursais, que nem sempre asseguram os valores do mérito (pense-se no peso excessivo atribuído ao fator “entrevista” na seleção dos candidatos à generalidade dos concursos públicos) e se houver um real empenho na substancial melhoria das condições laborais e de carreira dos profissionais de saúde.

O rápido aproveitamento da capacidade instalada nos sectores social e privado, através do recurso equitativo e em obediência a critérios de interesse público aos instrumentos jurídicos negociais disponíveis para o efeito, é outra solução possível.

Ou, ainda, a alternativa do fazer de conta que se faz, deixando arrastar a situação e aplicando o lema que, uma vez, ouvi, no Recife: “Pobre é para morrer.” O aumento da mortalidade em 2020 tem sido significativo, relativamente à média dos anos anteriores.

A celeridade no assegurar a prestação de cuidados de saúde que evitem a deterioração do estado de saúde da grande parte da população socioeconomicamente desfavorecida em Portugal é um imperativo ético-jurídico urgente. Se foi importante assegurar a viabilidade económico-financeira da TAP pelo menos até ao final do corrente ano, também o é assegurar a melhor saúde possível do Povo que a empresa simboliza e que não quer antecipar, nem um dia que seja, o seu voo para o Céu, por falta de “atividade assistencial” atempada.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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