“Estupro culposo” não existe

O mais perturbador é que nestes exercícios de palavra tende a ser o agressor o mais vulnerável: porque não percebeu, porque a vítima não foi suficientemente clara. E a vítima tende a ficar do outro lado, porque não reagiu como devia, porque não disse o que devia, porque não estava suficientemente vestida, porque estava demasiado sensual, porque devia ter estado mais sóbria.

Foto

Em 1997, a RTP1 passava uma série sobre a vida de adolescentes num colégio chamada Riscos. Uma destas adolescentes era a Rita (Sara Gonçalves), com um estilo muito irreverente. O professor Abel (José Wallenstein) sentia que as minissaias e os decotes pronunciados que a Rita usava eram uma provocação para ele, e assediava-a constantemente. Num dos episódios, o professor Abel viola a Rita. A cena não era demasiado gráfica, mas recordo-me bem dela, e da cena seguinte, em que a Rita estava na banheira, a chorar desesperada, para se tentar livrar do asco que se tinha apoderado dela. Literalmente. Que tinha literalmente possuído o corpo dela, contra a sua vontade. Eu tinha sete anos quando vi esta série, quando tomei consciência do crime de violação e, até hoje, não consigo ver nenhuma cena de violação em filmes ou séries.

Hoje deparei-me com a expressão “Estupro culposo não existe” e fui ler o que a desencadeou: a Mariana terá sido violada pelo André numa festa em Florianópolis, no Brasil. Mariana Ferrer é influencer digital e publica várias fotos sensuais nas suas redes. André de Camargo Aranha é um empresário bem-sucedido na área futebolística. O The Intercept conta que Mariana e André foram a uma festa e subiram para um camarim privado, onde a Mariana se sentiu grogue, suspeitando ter sido dopada (ainda que não tenha sido encontrado álcool ou droga nos seus exames toxicológicos).

A Mariana era virgem, facto que foi provado pericialmente, e terá sido violada pelo André. Inicialmente, este acontecimento foi classificado como “estupro de vulnerável”, após recolha de ADN do André na roupa da Mariana e outras provas consideradas relevantes. Mas o juiz Rudson Marcos acabaria por “absolver o réu por falta de provas por estupro de vulnerável”, refere a Globo, citando uma nota divulgada pelo Ministério Público de Santa Catarina. 

Durante o julgamento, o advogado do réu alegou que o André não tinha como saber que a Mariana não estava nas suas plenas capacidades e, portanto, não sabia que ela não queria fazer sexo, pelo que não existiu, no seu acto, intenção de dano, constituindo assim um “estupro culposo”, a expressão criada e usada pelo The Intercept "para resumir o caso e explicá-lo ao público leigo”, explica o portal no final do artigo, termo que, juridicamente, não tem validade, pois “não existe no ordenamento jurídico brasileiro”, lê-se na nota do Ministério Público. Eticamente, essa argumentação é muito questionável, porque pressupõe a desresponsabilização de uma agressão sexual. Contudo, foi referida e aceite em tribunal como forma de defesa do André. E eu estava a ler isto e lembrei-me da Rita do Riscos, a lavar as marcas da humilhação, e do professor Abel, que não tinha como saber que as minissaias que a Rita usava não eram para o seduzir nem provocar.

Em 2018, o número de 180 violações por dia foi um recorde no Brasil. Em Portugal, em 2017, a violação foi o crime violento que mais aumentou. Efectivamente, a leitura de acórdãos de tribunais em sentenças de violação em Portugal não é algo que nos dignifique, e não nos afasta tanto assim da miséria humana a que tivemos acesso hoje, com excertos do julgamento da Mariana, que ouviu que as suas fotografias eram “ginecológicas” e que as suas lágrimas, enquanto exigia respeito ao tribunal, eram de “choro dissimulado, falso e […] lábia de crocodilo”. Divagações sobre o não ou a convicção com que é proferido, a resistência física, num tom verdadeiramente humilhante e colocando totalmente o ónus na Mariana, a quem se pergunta: “Vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha-pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”. Todo este vernáculo foi utilizado no julgamento de uma potencial vítima de violação, na presença do juiz e do promotor de Justiça, que, garante o Ministério Público no comunicado, chegou a “intervir a favor da vítima” para “cessar a conduta do advogado”, apesar de tal não constar no vídeo divulgado, mas não foi suficientemente convincente para impedir que estas afirmações fossem feitas, com este conteúdo e desta forma.

O mais perturbador é que nestes exercícios de palavra da potencial vítima contra a do alegado agressor, tende a ser o agressor o mais vulnerável: porque não percebeu, porque a vítima não foi suficientemente clara. E a vítima tende a ficar do outro lado, porque não reagiu como devia, porque não disse o que devia, porque não estava suficientemente vestida, porque estava demasiado sensual, porque devia ter estado mais sóbria. Nos crimes de violação, mais do que uma presunção de inocência do agressor, assistimos muitas vezes a uma presunção de culpabilidade da vítima. As vítimas de violação que, como nenhumas outras, e por todos os sins e por todos os nãos, se “põem a jeito”.

Reconheço na agressão sexual um dos crimes mais hediondos. E “estupro culposo” não existe! Se é violação, é com intenção, é crime e tem que ser punido. Actos existirão, sem dolo, sem intenção maliciosa, mas, se assim for, não são violações. E é o desequilíbrio da mesma presunção de inocência que não se aplica à Mariana.

No Riscos, a Rita mudava de escola, de morada, de vida. Não sei o que fará a Mariana. Mas lamento, enquanto mulher, mas sobretudo enquanto ser humano, que se aplique e aceite um conceito no âmbito daquilo que se pretende ser um exercício de Justiça, para proteger um possível culpado. Que esse conceito tenha por base uma desresponsabilização do eventual agressor, que agride, mas sem intenção. E que tenha que ser a potencial vítima a abdicar de mais do que já abdicou, a passar por mais do que já passou: a ser destratada no exercício de um direito que lhe assiste, numa instituição que age em nome da Justiça. A ser destratada pelos preconceitos que estão martelados na pedra estéril da cabeça de alguns representantes dessa Justiça, e pela impassividade e inércia dos outros.

Actualização: Texto rectificado com as informações que constam da nota do Ministério Público. 

Sugerir correcção