Chega de saudade (de formar governo a qualquer custo)

Sim, precisamos de todos os democratas para delinear uma cerca sanitária que proíba o inaceitável. Isto não é medo, é apenas a defesa do projecto democrático português que tanto custou a construir aos nossos egrégios avós.

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Nuno Ferreira Santos

A mais perigosa análise que se possa fazer do partido Chega e André Ventura não parte dos que o bajulam como o mito, salvador da pátria ou justiceiro anticorrupção. Não. O maior problema que encaramos a partir de agora será a normalização deste discurso quando os eleitores moderados da direita democrática olharem para o partido de extrema-direita como uma possibilidade igual a qualquer outra. Quando compararem o Chega ao Bloco de Esquerda. Quando ao compararem partidos se esqueçam o que é a base da democracia e da república. A liberdade, a igualdade e a fraternidade. A partir desse momento ficarão para segundo plano todas as atoardas ditas. Ficarão votadas ao esquecimento todas as incongruências que serviram de palco para a ascensão de André Ventura — por alguma razão, votado ao esquecimento dentro de um dos dois maiores partidos da nossa democracia. Nada disto poderá passar incólume à direita.

O projecto unipessoal de André Ventura tem crescido nas sondagens com base na plantação do ódio — sentimento até então desconhecido no Portugal político. Ódio patrocinado pelas redes sociais através de campanhas de comunicação impulsionadas por contas falsas e exército de fiéis. O 1% multiplica-se pelo mundo virtual. Esta estratégia serve apenas para dividir o país e não para combater qualquer mal do regime. Há muito descontentamento e com razão em Portugal. Mas a economia não cresce com discursos xenófobos, antes pelo contrário.

Numa democracia adulta, devem ser os eleitores mais próximos deste partido os primeiros a condenar discursos que apenas servem para separar-nos. Até porque, se não o fizerem, os partidos da direita democrática correm o risco de serem engolidos pelo próprio Chega basta olharem para os nossos vizinhos espanhóis e ouvirem o que diz agora Pablo Casado acerca do Vox. Gritos de protesto? São bem-vindos. Todos os gritos de revolta são essenciais para o desenvolvimento da nossa sociedade, mas se queremos continuar a viver em paz e numa democracia, sabemos que há linhas vermelhas — na minha geração, aprendemos desde pequeninos — que não podem nem devem ser ultrapassadas.

Nunca os boletins de voto portugueses tiveram tantos projectos credíveis para serem escolhidos desde o Livre à Iniciativa Liberal. Sim, precisamos de todos os democratas para delinear uma cerca sanitária que proíba o inaceitável. Isto não é medo, é apenas a defesa do projecto democrático português que tanto custou a construir aos nossos egrégios avós. Não, ninguém se vai habituar ao ressurgir de narrativas em tudo idênticas às de 1930. Passaram cem anos e aprendemos todos onde nos levam os políticos que querem trazer a questão da raça, a propaganda como informação ou a nazificação da Igreja Evangélica como temas estruturantes. Desenganem-se. Estes temas são cruciais apenas para o elevador da carreira que André Ventura quer percorrer até ao último andar.

A “geringonça” que tivemos à esquerda também já a tivemos à direita e voltaremos a ter. É o normal funcionamento da democracia. Mas querer formar um governo à direita não pode significar fazer pactos com o diabo. O diabo que, neste momento, nem quer pactos com nenhum partido da direita portuguesa. Prefere antes tirar selfies junto a pessoas tão desaconselháveis como Marine Le Pen ou Matteo Salvini. E, sim, tenham atenção porque neste momento o diabo veste a pele de cordeiro.

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